sexta-feira, 29 de dezembro de 2017


BITCOIN E BLOCKCHAIN PARA CRÍTICOS LEIGOS EM ECONOMIA, EM TECNOLOGIA OU EM LAMBADA
Caio Almendra  dez 4 * Recife 

[Claudio Próspero: Um texto instigante para refletirmos sobre criptomoedas. E também sobre Economia e Descentralização]

Nada como o Natal para a gente ter tempo de fazer textão. Então, lá vai o meu sobre "bitcoin'.

Bitcoin é uma das aplicações atuais de uma tecnologia chamada "blockchain'. Blockchain é uma forma de descentralizar o registro de determinadas operações. E, já sai da sala a primeira leva de entediados e perdidos.

Vamos simplificar ao nível "armazém de cidade pequena". Suponhamos que o dono do único armazém em uma cidadezinha, chamado 'Shylock", registre  todas as dívidas que as pessoas fazem com ele em um caderninho.  

Ele decide quando cobra cada uma dessas pessoas, se cobra juros, se vai perdoar mais as dívidas ou se será mais  rígido.

Essas decisões de Shylock interferem em toda a cidade. Se ele comegar a cobrar todas as dívidas, reduzirá a quantidade de dinheiro da cidade, dificultando as pessoas de comprarem coisas uma das outras. Se fizer o movimento inverso, a riqueza circulará mais. 

Como a dívida de um é cobrada pelo outro, como na música 'O Malandro" do Chico Buarque, o maior caderninho de dívidas de uma cidadezinha  influencia toda a sociedade local. Esse poder do caderninho de dívidas é um poder e tanto. E, em escala maior, é chamado de   'política monetária".

O controle sobre o valor da moeda, sobre as taxas de juros, é necessariamente um poder político. Vivemos em um mundo onde há toda uma pretensão de "apolitizar" as coisas. E nada mais falacioso que isso.

Não há "forma técnica" de condução da política monetária. A política monetária nasce de uma decisão política, posteriormente aplicada com técnicas diversas. As técnicas são metrificáveis, discutíveis a partir de objetivos. O direcionamento político originário, não.

Aqui é a seara dos valores, quais grupos sairão prejudicados, quem estamos penalizando e quem estamos beneficiando.

A "isenção" não é uma possibilidade: comprimir o crédito beneficia determinados setores, expandi-los beneficia outros.

Bem, o que é blockchain? Blockchain é uma tecnologia de armazenagem de dados horizontais. Em resumo, ela permite que, ao invés do Shylock registrar em seu caderno quais as operações, todos tenham os próprios cadernos. Os computadores de Fulano, Beltrano e Deltrano registram todas as dívidas que eles possuam. Se Albertano entra no sistema, seu computador  também registra todas as dívidas.

No nosso exemplo do armazém da cidadezinha, ao invés de Shylock registrar todas as dividas, todos mantem livros criptografados com os registros de todas as dividas. Em uma cidade de mil pessoas pedindo fiado a Shylock, todas essas mil pessoas registrariam em seus livros quem deve a quem.

(É, por isso, que surgem diversos estudos sobre os gastos energéticos do bitcoin. Se todas as pessoas tem que registrar todas as operações do bitcoin, significa que todas as pessoas tem um caderno contábil em casa. Se esses cadernos fossem de papel, faltaria celulose no planeta. Ainda bem que eles são digitais mas mesmo o mundo digital tem um custo energético e de materiais, que costuma ser irrisório. Porém... registrar todas as operações financeiras de uma moeda com milhões de usuários em todos os computadores de todos os usuários transforma esse custo de irrisório para insustentável ambientalmente.)

Essa é uma tecnologia fascinante. Ela permite a desconcentração de poder político (e o poder financeiro é uma forma de poder político) das mãos de diversas empresas que realizam registros de informações, como bancos, seguradoras, operadoras de cartão de crédito, mega-varejistas e etc, etc, etc. Vou citar um exemplo óbvio:

Imaginemos um banco, digamos o Shylockbank, que pega emprestado dinheiro de pessoas a 0,5% ao mês, quando a pessoa A deposita na poupança e empresta a 5% ao mês, quando a pessoa B deve no cartão de crédito. O que permite ao banco esse poder exorbitante? Porque a pessoa A não empresta dinheiro para a pessoa B por menos e ambas saem na vantagem? Bem, porque o banco tem o poder exorbitante de ser o local onde se registram as operações financeiras. Registro dessas informações, assim, é um poder e tanto. E blockchain é uma tecnologia que permitiria horizontalizar tal poder.

Dito isso, o que é Bitcoin? Bem, bitcoin é uma moeda privada. E isso não é nada pioneiro: existem moedas privadas circulando aos montes no mundo. Seu vale-refeição é uma moeda privada, ações são moedas privadas, títulos de dívidas são moedas privadas. Qualquer título, a maioria fungíveis, é uma moeda privada. Se C deve a D e D tem o direito de vender a dívida de C para E ou qualquer outra pessoa, está formada uma moeda privada.

Como TODA moeda, as moedas privadas dependem de confiança dos seus usuários. Notem: mesmo as moedas estatais, as oficiais, com curso forçado e etc, dependem da confiança dos usuários. Em diversas situações, algumas presentes em nosso momento histórico, algumas moedas perderam de tal forma a confiança que deixaram de ser utilizáveis. Isso é especialmente comum em guerras: logo após a rendição alemã na Segunda Guerra Mundial, no interregno, não se sabia o que os aliados fariam dos reichsmarks (acabaram substituídos pelos deutchesmarks, ou "marcos alemães"). O resultado foi o fim do uso prático da moeda local, fotos incríveis de pessoas indo comprar pão com um carrinho de mão cheio de dinheiro. O mesmo acontece hoje com o dólar do Zimbabué.

Acontece que moedas privadas tem funcionamento diferente das divisas comuns, elas não tem um estado que busca garantir sua estabilidade. Elas oscilam de acordo com o mercado, logo, os maiores possuidores delas tem um poder político ainda maior que os maiores possuidores de moedas não-privadas. E elas entram em crise, como as crises do koku no japão do século XVII, ou a crise de um certo Antônio, cujos títulos lastreados no lucro de suas caravelas deixaram de ter qualquer valor quando suas caravelas afundaram. Ou a crise de 2008, quando um monte de moeda privada chamadas "CDO"s perderam por completo a confiança e valor e viraram pó, junto com boa parte da economia mundial.

Moedas, portanto, são entes que dependem da confiança da sua usabilidade para serem usáveis. Se olharmos bem, está longe de ser algo mágico. O FB só é usado porque seus usuários tem a expectativa de que seus amigos, familiares e conhecidos usarão o FB. Se, como em um livro do Saramago, todos simultaneamente desistissem de ir ao FB, um último usuário que não foi pego pela magia realista saramaguiana rapidamente notaria que a rede ficou inútil: ele seria o único a falar, completamente sozinho. O mesmo vale telefones, a internet como um todo. Praticamente, todos os produtos massificados hoje dependem, em certo nível, dessa relação social de confiança.

E, até aí, morreu o quico. O bitcoin, hoje, tem a mesma usabilidade das demais moedas, dado que há suficiente pessoas que confiam em seu valor. Até deixar de ter, como aconteceram com os tais CDOs em 2008.

E como saberemos? Bem, toda moeda tem um lastro de fundo. As moedas estatais tem o lastro garantidor do estado. As moedas privadas tem seus próprios lastros. Qual era o lastro dos CDOs? Dívidas imobiliárias norte-americanas. Quando o mercado imobiliário de lá aprofundou sua crise (com o crescimento dos juros daquele país), os CDOs deixaram de ter qualquer lastro e viraram pó.

O Bitcoin não é relacionado com um valor ou dívida concreta. Em parte, o que o lastreia é o próprio uso da tecnologia blockchain enquanto definidora de uma moeda. Isso estava até correndo bem até alguns anos atrás: mais pessoas acreditavam na necessidade de horizontalizar operações financeiras e mais operações eram realizadas. 

Recentemente, houve um descolamento entre o crescimento do valor do bitcoin e o número de operações. Em outras palavras, o valor perdeu-se do lastro. E estamos, portanto, no estágio de "bolha".

E quando elas estouram, levam junto mercados nada ligados a elas mas que parecem estar. Existem criptomoedas com outros lastros. A mais curiosa é a PotCoin, cujo grande representante é o ex-jogador de basquete e eterno desmiolado Dennis Rodman. Ela supre uma necessidade direta: como a maconha nos EUA apenas são legais a nível estadual, os dispensários(locais de venda de maconha medicinal ou recreativa legalizados) não podem fazer operações bancárias. Se fizerem, são enquadráveis pelo FBI como lavadores de dinheiro ou como narcotraficantes. 

Para poder comprar e vender insumos e etc, os dispensários criaram o PotCoin. Em suma, uma criptomoeda que pode comprar qualquer coisa mas que tem lastro em maconha entre os dispensários que a adotaram.

(Rodman foi vender a ideia da PotCoin para a Coreia do Norte (que, devido aos embargos econômicos norte-americanos, sempre foi vanguarda na utilização de criptomoedas), se tornou amigo de Kim Jong Un e, inacreditavelmente, participa do esforço diplomático de distensionamento entre os dois países)

O Bitcoin tomou um bom abalo recente. E aqui vale falar sobre games (já que já falamos sobre maconha). A Valve é uma produtora de jogos digitais que percebeu que o grande filão de mercado não estava em produzir jogos mas em vender a plataforma por onde as pessoas compram os jogos. Daí, ela inventou a Steam, a netflix dos jogos de videogame (na real, o Steam é anterior à netflix e essa denominação é um tanto injusta...). A Steam foi uma das primeiras empresas de grande porte a aceitar bitcoin. A Valve se interessou, lá pelas tantas, em estudar as moedas utilizadas dentro dos jogos de computadores.

Por incrível que pareça, jogar games sem o objetivo de vencer, apenas de acumular moedas virtuais para vender para jogadores preguiçosos movimenta uma quantidade imensa de pessoas. Os adolescentes norte-americanos e europeus valem-se da mesada dos pais para comprar o trabalho de milhares de jogadores de países pobres (em especial, dos asiáticos). Para estudar essas moedas e essa relação, a Valve contratou o economista Yanis Varoufakis, cujas pesquisas envolviam na época teoria dos jogos e natureza das moedas, como consultor. E lá ele ficou, até retornar à Grécia para ocupar cargos políticos.

Recentemente, Varoufakis percebeu a inversão gráfica do bitcoin, o crescimento de valor além do seu lastro. E resolveu contar tratar-se de uma bolha. A Steam conferiu as contas e parou de aceitar bitcoin. O número de transações caiu ainda mais... mas o valor segue subindo. Vai estourar.

Dito isso tudo, o que será dessa iniciativa inteira? Bem, eu acho que vivemos um momento de transformação intensa de nossa sociedade. As frações burguesas que dominaram o século XX estão em processo de substituição no século XXI. Século passado foi o século do banco, petróleo e mídia. As maiores empresas foram produtoras de petróleo, conglomerados de comunicação e bancos. 

Nesse século, essa velha economia será derrubada pelo "Silício", as empresas de cunho digital. Para tanto, elas precisam da capacidade de substituir todas as atividades essenciais realizadas por empresas "tradicionais". 

A primeira substituição foi no setor de consumo, com grandes varejistas perdendo espaço para "marketspaces", como a Amazon. O setor energético não será propriamente substituído mas há uma tendência de pulverização controlada pela tecnologia de redes. A televisão já perdeu espaço frente a internet faz tempo. E faltava o sistema bancário. Esse será o alvo do blockchain.

Nova sociedade? Sim, sem dúvidas. Melhor? Não sabemos. A descentralização, hoje, é uma possibilidade. Mas, o histórico recente é de iniciativas descentralizadoras, como o couchsurfing ou os apps de carona, serem cooptadas por empresas techs e se tornarem tão concentradoras quanto antes. Experimente ser expulso da Uber ou do AirBNB ou da Amazon ou ficar banido do FB. 

Tudo isso nasceu como descentralização e hoje são apenas outra forma de verticalização. Talvez ainda pior, dado que há um monopólio ainda mais intenso, dado a natureza de concentração de confiança que a internet tem. Mas isso é para outro texto. Esse acaba aqui por falta de tempo.