segunda-feira, 18 de abril de 2011

Capitalismo Parasitário - transformar uma enorme maioria de homens, mulheres, velhos e jovens numa RAÇA DEVEDORES

De: Claudio Estevam Prospero
Enviada em: sexta-feira, 10 de setembro de 2010 21:40
Assunto: atual "contração do crédito" não é resultado insucesso bancos. Ao contrário, é fruto, plenamente previsível, embora não previsto, seu extraordinário sucesso. Sucesso ao transformar uma enorme maioria homens, mulheres, velhos e jovens numa RAÇA DE DEVEDORES

1-Capitalismo parasitário – (páginas 10 a 32  (o inicio deste capítulo está disponível no site da Editora) - Total de páginas do livro: 92)

A atual contração do crédito não é um sinal do fim do capitalismo, mas apenas da exaustão de mais um pasto. A busca de novas pastagens terá início imediatamente, alimentada, como no passado, pelo Estado capitalista, por meio da mobilização forçada de recursos públicos (usando os impostos, em lugar do poder de sedução do mercado, agora abalado e temporariamente fora de operação).

Novas "terras virgens" serão encontradas e novos esforços serão feitos para explorá-las, por bem ou por mal, até o momento em que sua capacidade de engordar os lucros dos acionistas e as gratificações dos dirigentes for exaurida. Como sempre - conforme aprendemos no século XX, com uma longa série de descobertas matemáticas, de Henri Poincaré a Edward Lorenz -, um passinho para o lado pode levar ao precipício e acabar em  catástrofe; o mais minúsculo passo à frente pode desencadear inundações e acabar em dilúvio.

O anúncio de uma nova "descoberta', de uma ilha ainda não assinalada nos mapas, atrai multidões de aventureiros. Eles chegam num número muito maior que o tamanho e a capacidade do território virgem - são batalhões que, num piscar de olhos, terão de voltar a seus barcos para escapar do desastre iminente, esperando, contra todas as expectativas, que as embarcações ainda estejam lá intactas, no porto.

A grande questão é saber quando se esgotará a lista de terras passíveis de "virginização secundário' e quando as explorações, por mais frenéticas e engenhosas que sejam, deixarão de garantir um alívio temporário. É bastante improvável que os mercados - dominados como estão pela mentalidade líquido-moderna do "caçador", que veio substituir a postura pré-moderna do guarda-caça e sólido-moderna do jardineiro - se preocupem em expressar essas questões. Eles continuarão a viver passando de uma caçada bem-sucedida à outra, enquanto conseguirem desencavar novas chances de adiar a hora da verdade, mesmo que por pouco tempo e a qualquer custo.

A introdução dos cartões de crédito foi um sinal do que viria a seguir. Foram lançados "no mercado" cerca de 30 anos atrás, com o slogan exaustivo e extremamente sedutor de "Não adie a realização do seu desejo". Você deseja alguma coisa, mas não ganha o suficiente para adquiri-Ia? Nos velhos tempos, felizmente passados e esquecidos, era preciso adiar a satisfação (e esse adiamento, segundo um dos pais da sociologia moderna, Max Weber, foi o princípio que tornou possível o advento do capitalismo moderno): apertar o cinto, privar-se de certas alegrias, gastar com prudência e frugalidade, colocar o dinheiro economizado na caderneta de poupança e ter esperança, com cuidado e paciência, de conseguir juntar o suficiente para transformar os sonhos em realidade.

Graças a Deus e à benevolência dos bancos, isso já acabou! Com um cartão de crédito, é possível inverter a ordem dos fatores: desfrute agora e pague depois! Com o cartão de crédito você está livre para administrar sua satisfação, para obter as coisas quando desejar, não quando ganhar o suficiente para obtê-las.

Esta era a promessa, só que ela incluía uma cláusula difícil de decifrar, mas fácil de adivinhar, depois de um momento de reflexão: dizia que todo "depois", cedo ou tarde, se transformará em "agora” - os empréstimos terão
que ser pagos; e o pagamento dos empréstimos, contraídos para afastar a espera do desejo e atender prontamente as velhas aspirações, tornará ainda mais difícil satisfazer os novos anseios. Não pensar no "depois" significa, como sempre, acumular problemas.

Quem não se preocupa com o futuro, faz isso por sua própria conta e risco. E certamente pagará um preço pesado. Mais cedo do que tarde, descobre-se que o desagradável "adiamento da satisfação" foi substituído por um curto adiamento da punição - que será realmente terrível – por tanta pressa. Qualquer um pode ter o prazer quando quiser, mas acelerar sua chegada não torna o gozo desse prazer mais acessível economicamente. Ao fim e ao cabo, a única coisa que podemos adiar é o momento em que nos daremos conta dessa triste verdade.

Por mais amarga e deletéria que seja, esta não é a única pequena cláusula anexada à promessa, grafada em letras maiúsculas, do "desfrute agora, pague depois". Para impedir que o efeito dos cartões de crédito e do crédito fácil se reduza a um lucro que o emprestado r só realiza uma vez com cada cliente, a dívida contraída tinha de ser (e realmente foi) transformada numa fonte permanente de lucro.

Não pode pagar sua dívida? Em primeiro lugar, nem precisa tentar: a ausência de débitos não é o estado ideal. Em segundo lugar, não se preocupe: ao contrário dos emprestadores insensíveis de antigamente, ansiosos para  reaver seu dinheiro em prazos pré-fixados e não renováveis, nós, modernos e benevolentes credores, não queremos nosso dinheiro de volta. Longe disso, oferecemos mais créditos para pagar a velha dívida e ainda ficar com algum dinheiro extra (ou seja, alguma dívida extra) a fim de pagar novas alegrias. Somos os bancos que gostam de dizer "sim". Seus bancos amigos. Bancos "que sorriem", como dizia uma de suas mais criativas campanhas publicitárias.

O que nenhuma publicidade declarava abertamente, deixando a verdade a cargo das mais sinistras premonições dos devedores, era que os bancos credores realmente não queriam que seus devedores pagassem suas dívidas. Se eles pagassem com diligência os seus débitos, não seriam mais devedores. E são justamente os débitos (os juros cobrados mensalmente) que os credores modernos e benevolentes (além de muito engenhosos) resolveram e conseguiram transformar na principal fonte de lucros constantes. O cliente que paga prontamente o dinheiro que pediu emprestado é o pesadelo dos credores.

As pessoas que se recusam a gastar um dinheiro que ainda não ganharam, abstendo-se de pedi-lo emprestado, não têm utilidade alguma para os emprestadores, assim como as pessoas que (levadas pela prudência ou por uma honra hoje fora de moda) se esforçam para pagar seus débitos nos prazos estabelecidos. Para garantir seu lucro, assim como o de seus acionistas, bancos e empresas de cartões de crédito contam mais com o "serviço" continuado das dívidas do que com seu pronto pagamento. Para eles, o "devedor ideal" é aquele que jamais paga integralmente suas dívidas.

Os indivíduos que têm uma caderneta de poupança e nenhum cartão de crédito são vistos como um desafio para as artes do marketing: "terras virgens" clamando pela exploração lucrativa. Uma vez cultivadas (ou seja, incluídas no jogo dos empréstimos), não se pode mais permitir que escapem, que entrem "em pousio". Quem quiser quitar inteiramente seus débitos antes do prazo deve pagar pesados encargos.

Até a recente crise do crédito, os bancos e as empresas de cartões de crédito se mostravam mais que disponíveis a oferecer novos empréstimos aos devedores inadimplentes, para cobrir os juros não pagos sobre os débitos anteriores. Uma das maiores empresas de cartões de crédito da Grã-Bretanha causou escândalo (um escândalo de curta duração, podemos estar certos) quando revelou o jogo, recusando-se a fornecer novos cartões de crédito aos clientes que quitavam inteiramente seus débitos mensais, sem incorrer, portanto, no pagamento de encargos financeiros.

Darei apenas alguns exemplos do impacto devastador dessa estratégia. Um jornal dominical britânico publicou a história de um homem de 51 anos que tinha uma dívida de 58 mil libras com 14 empresas de cartões de crédito e agências financeiras. Com a súbita alta dos preços da gasolina, da eletricidade e do aquecimento, o homem não conseguia mais pagar os juros de seus débitos. Mesmo lamentando, a posteriori, a leviandade que o jogou em situação tão desagradável, o homem se queixava também de quem tinha lhe emprestado o dinheiro: a culpa, dizia ele, era "em parte" deles, por terem tornado tão terrivelmente fácil se endividar.

Em outro artigo publicado no mesmo dia, um casal listava os inúmeros cortes que teve de fazer no orçamento familiar, além da preocupação com sua jovem filha, já pesadamente endividada, mas que, cada vez que atingia o teto de gastos de seu cartão de crédito, recebia propostas de novos empréstimos por parte dos credores. Segundo o casal, os bancos que encorajam os jovens a pegar dinheiro emprestado para compras e, em seguida, a fazer outros empréstimos ainda maiores para cobrir as dívidas eram co-responsáveis pela lamentável situação em que a filha.

Em outro país, no distante Queensland australiano, Siobhan Healey, hoje com 23 anos, adquiriu seu primeiro cartão de crédito há alguns anos e comemorou aquele dia como o momento de sua libertação: agora finalmente era dona de si mesma, livre para administrar as próprias finanças, para decidir suas prioridades e dobrar a realidade a seus desejos.Em pouco tempo, pediu e obteve um segundo cartão de crédito para cobrir as dívidas  contraídas com o primeiro. Mas a tão desejada "liberdade financeira” não demorou a cobrar seu preço, mais precisamente quando ela descobriu que o segundo cartão não era suficiente para pagar os juros da primeira dívida. Procurou um banco e pediu um empréstimo para cobrir os encargos atrasados dos dois cartões, que, naquela altura, já tinham alcançado o sinistro montante de 26 mil dólares australianos. Mesmo assim, seguindo o exemplo dos amigos - um must para a sua geração -, pegou um pouco mais de dinheiro para pagar uma viagem ao exterior. Agora percebeu, afinal, que tinha poucas chances de sair desse beco sozinha, que pedir mais dinheiro emprestado não é o caminho para pagar as próprias dívidas. E comentou, infelizmente com um ano ou dois de atraso: "Tive que mudar de todo o meu modo de pensar e aprender a 'economizar para comprar'." Procurou a ajuda de um consultor financeiro e de um especialista em renegociações de dívidas para sair do precipício. Mas será que essas pessoas poderão ajudá-la a "mudar completamente o seu modo de pensar"? Veremos. Mas é bastante provável que o caminho de Siobhan seja mesmo uma escalada.

Ben Paris, porta-voz do Debt Mediators Australia, associação dos mediadores de crédito australianos, não ficou surpreso nem desconcertado. Comparou a história de Siobhan Healey com a tentativa de "esvaziar o mar com um balde", mas acrescentou imediatamente que os jovens têm o hábito de "se endividar acima dos próprios recursos". E destacou que o caso da jovem australiana não é nada incomum: "Todo ano falamos com 25 mil jovens em dificuldades financeiras; e só estamos vendo a ponta do iceberg."

Resumindo: a atual "contração do crédito" não é resultado do insucesso dos bancos. Ao contrário, é o fruto, plenamente previsível, embora não previsto, de seu extraordinário sucesso.

Sucesso ao transformar uma enorme maioria de homens, mulheres, velhos e jovens numa raça de devedores. Alcançaram seu objetivo: uma raça de devedores eternos e a Auto-perpetuação do "estar endividado", à medida que fazer mais dívidas é visto como o único instrumento verdadeiro de salvação das dívidas já contraídas.

Hoje, ingressar nessa condição é mais fácil do que nunca antes na história da humanidade, assim como escapar dessa condição jamais foi tão difícil. Todos os que podiam se transformar em devedores e milhões de outros que não podiam e não deviam ser induzidos a pedir empréstimos já foram fisgados e seduzidos para fazer dívidas. Como em todas as mutações precedentes do capitalismo, desta vez o Estado também participou da criação
de novos pastos a explorar: foi do presidente Clinton a iniciativa de introduzir nos Estados Unidos as hipotecas subprime.

Elas eram garantidas pelo governo, a fim de oferecer crédito, para compra da casa própria, a pessoas desprovidas dos meios de pagar a dívida assumida, e, portanto, a fim de transformar setores da população até então inacessíveis à exploração creditícia em devedores.

Mas assim como o desaparecimento de pessoas descalças representa um problema para a indústria de calçados, o desaparecimento de pessoas não endividadas representa um desastre para a indústria de crédito. E a famosa previsão de Rosa Luxemburgo mostrou-se novamente verdadeira: mais uma vez, o capitalismo esteve perigosamente perto de um suicídio indesejado, conseguindo exaurir o estoque de novas terras lucrativas.

Nos Estados Unidos, o endividamento médio das famílias cresceu algo em torno de 22% nos últimos oito anos - tempos de uma prosperidade que parecia não ter precedente. A soma total das aquisições com cartões de crédito não ressarcidas cresceu 15%. E a dívida, talvez ainda mais perigosa, dos estudantes universitários, futura elite política, econômica e espiritual da nação, dobrou de tamanho. Os estudantes foram obrigados/ encorajados a viver a crédito, a gastar um dinheiro que, na melhor das hipóteses, só ganhariam muitos anos mais tarde.

O adestramento para a arte de "viver em dívida' e de forma permanente foi incluído nos currículos escolares nacionais. A Grã-Bretanha também chegou a situação bem semelhante. Em agosto de 2008, a inadimplência dos consumidores superou o total do Produto Interno Bruto da Grã-Bretanha. As famílias britânicas têm dívidas num valor superior a tudo o que suas fábricas, fazendas e escritórios produzem. Os outros países europeus não estão em situação muito diversa. O planeta dos bancos está esgotando as terras virgens e já se apropriou implacavelmente de vastas extensões de terras endemicamente estéreis.

No momento em que escrevo estas palavras, a história parece estar bem longe de uma conclusão. No final de 2008, Henry M. Paulson Jr., então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, encarregado da missão de guiar seu
país (e, portanto, também o resto do planeta globalizado) para longe da estagnação financeira, declarou:

O programa atual de 250 milhões de dólares para aquisição de capitais é um remédio forte para nossas instituições financeiras. Mais quantidade de capital permitirá que os bancos suportem as perdas derivadas da desvalorização ou da venda de ativos problemáticos. E uma capitalização mais forte é essencial para incrementar o crédito, elemento vital para a recuperação econômica. *

* Cf. Henry. M. PaulsanJr., "Facing ane challenge at a time", International Herald Tribune, 19 nov 2008, p.6

Como podemos ver, nenhum dos pressupostos ou estratégias falenciais responsáveis pela crise atual foram postos em discussão pelos poderes constituídos. Na cabeça dos que detêm o poder, mais crédito (ou seja, a produção em série de indivíduos endividados) ainda é a chave da prosperidade econômica. São apenas os "ativos problemáticos", e não as "instituições problemáticas", que causam problemas - e, para nossa salvação, só precisamos de um "remédio", e não de uma corajosa intervenção cirúrgica.

Para não passar vergonha diante das notícias vindas diretamente da cova do leão, o ministro da Economia do Reino Unido, Alistair Darling, no orçamento para 20IO (segundo a sóbria avaliação do Observer, respeitadíssimo e influente semanário britânico, quatro dias após as declarações do ministro norte-americano) decidiu "gastar bilhões a torto e a direito para garantir a circulação de crédito". Segundo a ponderada opinião do periódico, Darling "espera que eles [os consumidores britânicos] ignorem as nuvens que se adensam no horizonte e gastem, gastem, gastem"* (seguindo, como poderíamos acrescentar, o exemplo de seu governo e acatando mais uma vez a regra do "compre agora e pague depois").

* Heather Stewart, Lisa Bachelor, "Darling's Hope: we have to spend, spend, spend", lhe Observer, 23 nov 2008 (acessível na Internet no endereço www.guardian.co. uklbusiness20081 nov 1231recession-budgetreport- alistair-darling) .
.

As notícias sobre a morte do capitalismo, como diria Mark Twain, são extremamente exageradas. E os obituários da fase creditícia da história da acumulação capitalista são prematuros!

A reação à "contração do crédito", por mais impressionante e revolucionária que possa parecer nas manchetes dos jornais e nas frases de efeito dos políticos, até agora se limitam ao "mais do mesmo", na esperança vã de que as potencialidades desta fase, em termos de retomada dos lucros e do consumo, ainda não estejam totalmente esgotadas: uma tentativa de recapitalizar as empresas emprestadoras e reabilitar seus devedores para o crédito, de modo que o negócio de emprestar e pedir emprestado possa voltar à "normalidade" .

O Estado assistencial para os ricos (que, ao contrário de seu homônimo para os pobres, jamais teve sua racionalidade questionada e, ainda mais, nunca sofreu tentativas de desmantelamento) voltou aos salões, deixando as dependências de serviço a que seus escritórios estiveram temporariamente relegados, para evitar comparações desagradáveis. O Estado voltou a exibir e flexionar sua musculatura como não fazia há muito tempo, com esses propósitos: agora, porém, pelo bem da continuidade do próprio jogo que tornou sua flexibilização difícil e até - horror! - insuportável; um jogo que, curiosamente, não tolera Estados musculosos, mas ao mesmo tempo não pode sobreviver sem eles.

O que ficou alegremente (e loucamente) esquecido nessa ocasião é que a natureza do sofrimento humano é determinada pelo modo de vida dos homens. As raízes da dor da qual nos lamentamos hoje, assim como as raízes de todos os males sociais, estão profundamente entranhadas no modo como nos ensinam a viver: em nosso hábito, cultivado com cuidado e agora já bastante arraigado, de correr para os empréstimos cada vez que temos um problema a resolver ou uma dificuldade a superar. Como poucas drogas, viver a crédito cria dependência. Talvez mais ainda que qualquer outra droga e sem dúvida mais que os tranqüilizantes à venda. Décadas de generosa administração de uma droga só pode levar ao trauma e ao choque quando ela deixa de estar disponível ou fica difícil de encontrar. Portanto, o que se está propondo agora é a saída fácil para a desorientação que aflige tanto os tóxico-dependentes quanto os traficantes: reorganizar o fornecimento (regular, espera-se) da droga. Voltar àquela dependência que até hoje parecia vantajosa para todos, tão eficiente que nem nos preocupávamos com a questão e muito menos com a busca de suas raízes.

Chegar às raízes do problema que agora saiu do compartimento top secret para o centro da atenção pública não é uma solução instantânea, mas a única que tem alguma possibilidade de se mostrar adequada à enormidade do problema e de sobreviver aos intensos - mas comparativamente breves - tormentos da desintoxicação. Até agora nada leva a pensar que estamos nos aproximando das raízes do problema. A onda foi barrada a um passo do abismo por generosas injeções de "dinheiro do contribuinte". O banco Lloyds TSB começou a pressionar o Tesouro britânico para que destinasse parte do pacote de salvação aos dividendos dos acionistas. E, "a despeito da indignação oficial dos porta-vozes do Estado, a instituição de crédito seguiu firme na distribuição de bonificações para aqueles cuja avidez desenfreada havia levado os bancos e seus clientes ao desastre. Dos Estados Unidos, chegou a notícia de que 70 bilhões de dólares, cerca de 10% dos subsídios que as autoridades federais pretendiam injetar no sistema bancário americano, já haviam sido usados em bônus pagos exatamente aos que levaram o sistema à beira da ruína. Por mais imponentes que sejam as medidas que os governos já tomaram, pretendem tomar ou dizem que querem tomar, todas elas buscam "recapitalizar" os bancos e deixá-los novamente em condições de desenvolver suas "atividades normais": em outras palavras, a atividade que é a principal responsável pela crise atual. Se os devedores não tiveram condições pessoais de pagar os juros sobre a orgia consumista inspirada e amplificada pelos bancos, talvez possam ser induzidos/obrigados a fazê-lo por meio dos impostos que pagam ao Estado.

Ainda não começamos a pensar seriamente sobre a sustentabilidade dessa nossa sociedade alimentada pelo  consumo e pelo crédito. O "retorno à normalidade" prenuncia um retorno aos métodos equivocados e sempre potencialmente perigosos. São intenções que preocupam, pois sinalizam que nem as pessoas que dirigem as instituições financeiras nem os governos chegaram à raiz do problema em seus diagnósticos (e menos ainda em suas ações).

Simon Jenkins - comentarista com excelente capacidade de análise que escreve para lhe Guardian – citou Hector Sants, diretor da Autoridade de Serviços Financeiros (Financial Services Authority, FSA, órgão de controle  do setor financeiro do governo britânico), que admitiu a existência de "modelos de negócios mal-equipados para sobreviver ao estresse, ... um fato que lamentamos", Jenkins observou que "era como um piloto protestando que seu avião estava funcionando muito bem, com exceção dos motores". Mas ele não perde a esperança: continua a pensar que, assim que a cultura da "ganância é bom" for "varrida pela recente histeria dos lucros do setor financeiro", os "componentes não econômicos daquilo que definimos genericamente como boa qualidade de vida assumirão maior importância" – seja em nossa filosofia de vida, seja na estratégia política dos nossos governos.

Também essa é a nossa esperança: ainda não chegamos ao ponto de não retorno, ainda há tempo (embora pouco) para refletir e mudar de rumo, ainda podemos virar esse choque e esse trauma a nosso favor e de nosso filhos.

Essa espécie de Estado assistencial para os ricos (ou, mais exatamente, a política de mobilizar, por intermédio do Estado, os recursos públicos que as empresas capitalistas não conseguem convencer o público a lhes   entregar diretamente) não é novidade: apenas o alcance e a publicidade que o acompanham assumiram proporções capazes de causar escândalo. Segundo Stephen Sliwinski, ex-colaborador do Cato Institute, já em 2006 o governo federal dos Estados Unidos havia gastado 92 bilhões de dólares para subvencionar os colossos da indústria do país, como a Boeing, a IBM ou a General Motors.

Muitos anos atrás, Jürgen Habermas sugeria, num livro intitulado A crise de legitimação do capitalismo tardio, que o Estado é "capitalista" à medida que sua função primária - aliás, sua razão de ser - é a "remercadorização" do capital e do trabalho. * A substância do capitalismo, recordava Habermas, é o encontro entre capital e trabalho. O objetivo desse encontro é uma transação comercial: o capital adquire o trabalho. Para que a transação seja bem-sucedida, é preciso satisfazer duas condições: o capital deve ser capaz de comprar e o trabalho deve ser "vendável", ou seja, suficientemente atraente para o capital.

* Jürgen Habermas, A crise de legitimação do capitalismo tardio, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980.

A principal tarefa (e, portanto, a legitimação) do Estado capitalista é garantir que ambas as condições se cumpram. O Estado tem, portanto, duas coisas a fazer. Primeiro, subvencionar o capital caso ele não tenha o dinheiro necessário para adquirir a força produtiva do trabalho. Segundo, garantir que valha a pena comprar o trabalho, isto é, que a mão de obra seja capaz de suportar o esforço do trabalho numa fábrica. Portanto, ela deve ser forte, gozar de boa saúde, não estar desnutrida e ter o treinamento necessário para as habilidades e os hábitos comportamentais indispensáveis ao ofício industrial. Estas são despesas que os aspirantes a empregadores capitalistas dificilmente poderiam enfrentar se tivessem de assumi-las, porque o custo de contratar trabalhadores se tornaria exorbitante.

Habermas escreveu durante o crepúsculo da sociedade sólido-moderna dos produtores e interpretou (erroneamente, como se viu em seguida) a evidente incapacidade dos Estados de absorver as duas tarefas necessárias para a sobrevivência desta sociedade como "crise de legitimação" do Estado capitalista. Na verdade, o que acontecia era uma transição da sociedade "sólida" de produtores para uma sociedade "líquida" de consumidores. A fonte primária de acumulação capitalista se transferia da indústria para o mercado de consumo.

Para manter vivo o capitalismo, não era mais necessário "remercadorizar" o capital e o trabalho, viabilizando assim a transação de compra e venda deste último: bastavam subvenções estatais para permitir que o capital vendesse mercadorias e os consumidores as comprassem. O crédito era o dispositivo mágico para desempenhar (esperava-se) esta dupla tarefa. E agora podemos dizer que, na fase líquida da modernidade, o Estado é "capitalista" quando garante a disponibilidade contínua de crédito e a habilitação contínua dos consumidores para obtê-lo.

Quando os elefantes brigam, quem paga o pato é a grama. Na guerra entre dois pretendentes à ditadura, a sorte dos pobres, dos indolentes e dos incapacitados por outros motivos para atingir as condições de sobrevivência física e social acaba, na prática, quase esquecida. Mas apresentar as duas ditaduras como a principal oposição e o principal dilema da sociedade contemporânea é profundamente equivocado: é fácil tomar as aparências por realidade e as declarações por medidas concretas.

Antes de mais nada, é preciso sublinhar que os dois elefantes, o Estado e o mercado, podem lutar entre si ocasionalmente, mas a relação normal e comum entre eles, num sistema capitalista, tem sido de simbiose. Pinochet no Chile, Syngman Rhee na Coreia do Sul, Lee Kuan Yew em Singapura, Chiang Kai-Shek em Taiwan, ou os atuais governantes da China foram ou são "ditadores de Estado" em tudo, menos no nome, mas conduziram ou conduzem uma notável expansão e um rápido crescimento da potência dos mercados. Se atualmente os países citados são exemplos do triunfo do mercado, o mérito é todo dessas prolongadas "ditaduras do Estado".

É bom lembrar, aliás, que a acumulação inicial de capital conduz invariavelmente a uma polarização sem precedentes e contestada das condições de vida e provoca tensões sociais explosivas para a classe empresarial e mercantil emergente, é necessário que essas tensões sejam suprimidas por um Estado potente, impiedoso e coercivo.

A cooperação entre Estado e mercado no capitalismo é a regra; o conflito entre eles, quando acontece, é a exceção. Em geral, as políticas do Estado capitalista, "ditatorial" ou "democrático", são construídas e conduzidas no interesse e não contra o interesse dos mercados; seu efeito principal (e  intencional, embora não abertamente declarado) é avalizar / permitir / garantir a segurança e a longevidade do domínio do mercado.

O segundo elemento da dupla tarefa de "remercadorização" de que falamos acima, a "remercadorização do trabalho", não representa uma exceção. Por mais fortes que fossem as considerações morais que levavam à  introdução do Estado assistencial, ele dificilmente teria nascido se os donos das fábricas não tivessem percebido que cuidar do "exército industrial de reserva" (manter os reservistas em boa forma caso fossem re-convocados para o serviço ativo) era um bom investimento, potencialmente rentável.

Se o Estado assistencial hoje vê seus recursos minguarem, cai aos pedaços ou é desmantelado de forma deliberada, é porque as fontes de lucro do capitalismo se deslocaram ou foram deslocadas da exploração da mão de obra operária para a exploração dos consumidores. E também porque os pobres, despojados dos recursos necessários para responder às seduções dos mercados de consumo, precisam de dinheiro - não dos tipos de serviço oferecidos pelo Estado assistencial - para se tornarem úteis segundo a concepção capitalista de "utilidade".







Nenhum comentário:

Postar um comentário