quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

4/1/1999 - Roda Viva - Domenico De Masi fala de suas pesquisas, da realização trazida pelo trabalho e da necessidade do tempo livre, que traz benefícios para a saúde física e mental

Domenico De Masi 1999
4/1/1999 
Domenico De Masi fala de suas pesquisas, da realização trazida pelo trabalho e da necessidade do tempo livre, que traz benefícios para a saúde física e mental

   [Edição, para facilitar leitura, da transcrição disponível em:]

   Memória do Roda Viva - FAPESP - (com vídeo)
     http://www.rodaviva.fapesp.br/materia_busca/30/Domenico%20Di%20Masi/entrevistados/domenico_de_masi_1999.htm 
     
Paulo Markun: Boa noite. Nas comemorações dos 30 anos da TV Cultura o Roda Viva traz hoje um convidado também especial. Ele já esteve aqui no programa em janeiro e resultou numa das maiores repercussões já tidas pelo Roda Viva. Conosco, esta noite, o sociólogo italiano Domenico de Masi, professor de sociologia do trabalho da Università della Sapienza, de Roma, que tem chamado muita atenção com suas idéias sobre as relações entre o homem e o trabalho. Como o professor De Masi, outros pensadores de importância já passaram aqui pelo Roda Viva, também, ao longo de sua existência. Nós trouxemos diversos pensadores e, com isso, o Roda Viva tem sido um centro de discussão de todas as áreas do pensamento humano. Antes de começar, vamos relembrar um pouco da memória do Roda Viva, vendo outros convidados internacionais, que já deixaram aqui suas idéias e suas polêmicas.

[Vídeo]

Exibição de  vídeo com outros convidados internacionais e trechos de entrevistas.

Paulo Markun: Bem, as idéias de mundo, de futuro, de perspectivas de vida e de mudanças da nossa realidade também são os temas desta nossa rodada de hoje. Para entrevistar o professor Domenico De Masi nós convidamos o jornalista Caco de Paulo, jornalista da revista Veja SP; o publicitário Washington Olivetto, presidente e diretor de criação da W/Brasil; o sociólogo Dante Silvestre Neto, gerente de estudos e desenvolvimento do Sesc/SP; a educadora Roseli Fichmann, professora de pós-graduação da Universidade de São Paulo e da Universidade Mackenzie; a economista Cláudia Costin, secretária do Estado de Administração e Patrimônio do governo federal; o jornalista Gilberto Dimenstein, do jornal Folha de S. Paulo e o jornalista Marco Antônio de Resende, diretor de redação da revista VIP/Exame.

O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Hoje, infelizmente, você não pode fazer perguntas para o entrevistado, porque este programa foi gravado. O que, por outro lado, nos permite que nós acompanhemos todas as idéias do professor De Masi graças à técnica da tradução e da legendagem. Professor De Masi, boa noite.

Domenico De Masi: Boa noite.

Paulo Markun: Em janeiro, como já falei aqui, o senhor esteve neste programa e a repercussão foi absolutamente surpreendente para todo mundo. Mais de cinco mil fitas com a gravação desta entrevista foram vendidas. O livro que o senhor escreveu, A emoção e a regra [livro que analisa as estratégias e as formas organizacionais dos fenômenos criativos junto com a eficiência, publicado no Brasil em 1999],  já está na quinta edição e o senhor já voltou ao Brasil para fazer mais palestras e para apresentar suas idéias com mais freqüência. Eu pergunto o seguinte: a que o senhor atribui essa repercussão? Por que o Brasil, na sua opinião, está tão interessado nas idéias que o senhor apresenta?

Domenico de Masi: Neste meu giro pelo Brasil, muitos me fizeram a mesma pergunta. A pergunta devia ser feita aos brasileiros e não a mim, pois quando alguém faz sucesso num programa corre o risco de se atribuir esse sucesso. Mas não é o caso.

De fato, o senhor notará que, na segunda vez, o sucesso será menor e, se houver uma terceira, o sucesso será menor ainda e os ouvintes acabariam se cansando [sorri]. Em parte, foi a novidade. Pela primeira vez, participei de um programa como este. Depois, porque é provável que haja uma relação objetiva entre minhas idéias e o que atualmente está surgindo num país extraordinariamente dinâmico como o Brasil. Existem momentos mágicos em que as idéias de algumas pessoas e as idéias latentes de todo um país podem coincidir [gesticulando].

Isso coincide também de forma mais ampla. Idéias semelhantes às minhas são difundidas por outros pensadores em vários pontos do mundo, e têm sempre mais sucesso, pois, objetivamente, a sociedade industrial está em crise e busca-se um modelo novo com o qual possamos conviver melhor.

Paulo Markun: Agora, nós que estamos nessa sociedade industrial em crise... O Brasil nem chegou lá, naquele ponto-limite de desenvolvimento da sociedade industrial e, ao mesmo tempo, sofre os problemas de ser um país subdesenvolvido ou em desenvolvimento, emergente — cada vez inventam uma nova palavra para explicar o mesmo problema—, e de outro lado, nós já começamos a sofrer os problemas e as crises da sociedade efetivamente pós-industrial.

Quer dizer, uma cidade como São Paulo, por exemplo, em que há enormes problemas de trânsito [pontuando com as mãos], de poluição, de segurança, de excesso de população, convive com a realidade de regiões do nordeste do país ou do centro-oeste onde não há, ainda, esse grau de desenvolvimento. O senhor acha que este tipo de idéia que o senhor traz, de alguma forma, pode significar um salto que permita a gente não ir até o fim da viagem, na direção deste desenvolvimento industrial?

Domenico De Masi: Bem, veja, o Brasil é um espelho do mundo, porque, em um só país, ele reproduz as contradições existentes no mundo inteiro. Creio que, se os problemas forem resolvidos no Brasil, será um modelo para o resto do mundo [gesticulando]. No próximo dia 11 de outubro, o planeta vai atingir 6 bilhões de habitantes. Isto representa uma população dez vezes maior que a do fim do século XVI.

E no mundo todo existem essas contradições. Cinco bilhões de pessoas, praticamente, vivem como nas favelas. E um bilhão vive como se vive na Avenida Paulista, aqui em São Paulo. Essas contradições existentes no mundo todo são encontradas aqui, num só país e, muitas vezes, numa mesma cidade. Isto é um ponto fraco e forte também.

Vocês têm, por exemplo, o desemprego pré-industrial, devido ao fato de que ainda não há a difusão de um trabalho do tipo moderno. Mas vocês já têm o desemprego pós-industrial, pelo fato de que as indústrias têm tal força de tecnologia, que devem dispensar cada vez mais pessoas. Eu repito: se os problemas se resolverem no Brasil, isto será o modelo para um terceiro caminho entre capitalismo e comunismo no mundo inteiro.

Marco Antônio de Rezende: Professor De Masi, embora o senhor seja um sociólogo e faça uma análise, digamos, científica desses sistemas, das relações de trabalho, o trabalho na era pós-industrial, eu tenho um amigo que comentou comigo que o senhor tem uma visão um pouco poética, às vezes.

E, talvez, ele tenha alguma razão, porque o senhor, sendo italiano, certamente soube que, dez dias atrás, foi assassinado na Itália o principal assessor do ministro do Trabalho. Foi assassinado por um grupo que reivindica a bandeira das Brigadas Vermelhas. Isso parece uma coisa tão antiga, terrorismo, Brigadas Vermelhas, uma coisa estranha.

Por outro lado, o fato de terem assassinado um assessor importantíssimo do ministro do Trabalho [professor Marco Biagi, assassinado em março de 2002. Cinco membros das Brigadas Vermelhas foram condenados à prisão perpétua pela morte em 2005], que não é um simples assessor como nós conhecemos aqui, era um economista muito preparado, que discutia todos os meses com cinqüenta pessoas, que representavam todos os segmentos, da indústria, do sindicato, do governo etc. Então, houve esse ato terrorista.

O senhor não acha que isso traz a discussão sobre o futuro do trabalho ou as relações trabalhistas da era pós-industrial ou ainda a perspectiva do tempo livre neste novo tempo, com novas tecnologias, que vão diminuir... Traz, para um escala humana, muito concreta... Ou seja, toda a revolução que está havendo na organização do trabalho, a introdução de novas tecnologias, tudo isso gera um desemprego...

Está gerando um desemprego que, para as pessoas que estão desempregadas, é um drama muito concreto, não é? E esse crime, agora, na Itália, das Brigadas Vermelhas, traz para uma dimensão dramática. Como resolver esta questão? Como resolver este problema? Como enfrentar o problema das pessoas que não estão encontrando emprego nessa nova era?

Domenico De Masi: O senhor está me dizendo várias coisas. A primeira é que minhas idéias podem ser acusadas de poéticas. Tenho uma grande admiração pelos poetas. Eles são a alegria da minha vida. Mas, infelizmente, não tenho o dom da poesia.

Minhas idéias têm sempre por base estudos muito precisos, muito demorados, muitas vezes levam anos, nos quais colaboram dezenas de meus colaboradores e colegas. Eu, com meus alunos na universidade, procuro incutir o hábito de basear qualquer afirmação sobre dados concretos, estatísticos, econômicos e sociais. Ante qualquer afirmação que um aluno meu faça, eu pergunto qual é a base estatística do que ele está dizendo [coloca a mão no queixo].

 Hoje, é impossível enfrentar o mundo com idéias novas sem contar com a força das estatísticas. Os economistas, por exemplo, muitas vezes têm idéias muito erradas. Acredito que, daqui a algumas décadas, a obra dos economistas do século XX será lembrada como uma das obras mais negativas, sobretudo a partir de Keynes [John Maynard Keynes, criador da macroeconomia, que estuda o comportamento agregado das principais tendências da economia no que compreende a geração de produção e renda, principalmente], pois ele foi também um grande poeta.

Foi um homem que colaborou com o Grupo de Bloomsbury [grupo de artistas acadêmicos ingleses que existiu entre 1905 e o fim da Segunda Guerra Mundial], ao lado de Virginia Woolf, Forster, de Walessa e Strachey [escritores ingleses]. Ele tinha uma mente eclética. Casou-se com uma grande bailarina clássica. Portanto, encarava a economia como parte de um todo e tendia a resolver o todo, e não a parte.

Os economistas atuais nos aterrorizam com a matemática. Então, quem tem idéias diferentes deve ter a mesma base matemática e estatística, senão não é levado a sério. Desculpe [sorri] se me prolonguei demais sobre sua primeira afirmação.

A segunda parte se refere ao crime das Brigadas Vermelhas. Eu sou muito amigo do ministro do Trabalho italiano [Antônio Bassolino]. O ministro freqüentou muitas vezes minhas aulas quando eu ensinava na Universidade de Nápoles. Ele ainda era muito jovem. Eu conhecia o professor que foi assassinado. Colaborei muitas vezes em trabalhos similares aos do professor assassinado. Portanto, de certa forma, podia ter acontecido comigo.

Além disso, quando houve, nos anos de 1970, forte terrorismo na Itália, eu fui, pelo menos durante dois anos, alvo das Brigadas Vermelhas, pois eu ensinava abertamente aos meus alunos, em aula, a desconfiar do terrorismo. Acho que da morte não pode surgir a vida. E há tantos meios antes da violência. Claro, em certos casos, a violência é necessária. Mas é o último, o último, o último anel de uma longa corrente que pode ser percorrida, deve ser percorrida, toda, antes de se chegar à violência.

O crime italiano, porém, esse assassinato foi, infelizmente, uma das piores formas de despertar a conscientização sobre um fato real. Todos os jornais, por muitos dias, trouxeram em primeira página o assassinato do professor. Mas todo dia, não todo dia, mas muito freqüentemente, com certeza quase toda semana, um desempregado se suicida na Itália. Por ocasião do 1º de maio [Dia do Trabalho], promovi na TV italiana um encontro, um debate, justamente com Bassolino, o ministro do Trabalho. E assistimos na televisão a uma reportagem sobre uma senhora de Nápoles, cujo marido havia se suicidado poucos dias antes [coloca a mão no queixo]. Ele havia se suicidado por vergonha de dizer aos filhos que estava desempregado. Por vergonha de dizer que não podia lhes dar dinheiro. Aquela senhora dizia que as crianças pediam ao pai para ir ao cinema, para comprar um sorvete, mas, no fim, ele não agüentou e se suicidou. Agora, desses suicídios a imprensa não fala.

Não quero igualar as duas coisas, mas quero dizer que esse assassinato, esse homicídio italiano confirma que, diante do problema do emprego e desemprego, todos aqueles que têm o poder tomaram um rumo, um único rumo e percorrem sempre aquele. De acordo com esse rumo e essa idéia [junta as mãos], para sanar o desemprego é preciso incrementar os investimentos. Significa que o Estado deve auxiliar a empresa privada. É preciso reduzir os impostos das empresas. Dessa forma, o Estado terá menos dinheiro; com menos dinheiro, pode fazer menos pelo social. Portanto, pode dar menos escolas públicas, menos saúde pública, menos transporte e tudo mais.

E todo esse dinheiro que é tomado à redistribuição pública e social vai para as empresas que, além de tudo, encontram segmentos de mercado completamente livres e à sua disposição. Porque, se o Estado não cuida da saúde pública, a empresa privada pode lucrar com a saúde privada. Se não cuida do transporte, a empresa privada pode lucrar com o transporte privado. Então, as empresas têm novos incentivos, novas reduções fiscais, novos segmentos de mercado à sua disposição e, além disso, em função da tecnologia, demitem um número cada vez maior de pessoas.

Marco Antônio de Rezende: [interrompendo] Pelo que eu estou entendendo, desculpe interromper, professor, o senhor está fazendo uma crítica do atual modelo econômico que vigora nos países ocidentais, inclusive o Brasil. O senhor propõe uma alternativa a esse modelo?

Domenico De Masi: É exatamente isso. Estou dizendo que existem duas soluções possíveis para o desemprego. Foi escolhida sempre e somente uma, a qual está errada. E está errada não porque eu, ideologicamente ou poeticamente, me oponho a essa solução, mas porque, depois de 50 anos, não deu nenhum resultado e só vem aumentando o desemprego. Porque, como eu dizia...[sendo interrompido]

Gilberto Dimenstein: [interrompendo] E qual seria a outra solução?

Domenico De Masi: Eu já chego lá. Então, a solução formulada hoje, pelo empresário privado, nos países capitalistas, é a que eu mencionei antes. Obter mais dinheiro do Estado, reduzir a mão de obra e demitir o pessoal. E, portanto, acumular uma quantia enorme de dinheiro. Com que objetivo? Os empresários dizem que é para investir, que o investimento cria novas vaga de trabalho.

Ora, em primeiro lugar [pontuando com as mãos] é verdade que investindo criam-se novas vagas. Criam-se pouquíssimas. Porque, hoje, o empresário que investe não compra mão-de-obra, compra máquinas. O diretor superintendente da Montedisson, uma grande empresa italiana, me dizia há pouco tempo que a Montedisson, para oferecer uma vaga, devia investir quatro bilhões [de liras]. Ou seja, são necessários 3 bilhões e 900 bilhões de liras para comprar máquinas e cem milhões para pagar uma pessoa que... Então, cheguei certamente...[sendo interrompido]

Gilberto Dimenstein: [interrompendo] Eu só queria acrescentar uma pergunta àquela outra pergunta. Aqui em São Paulo, por exemplo, como o Markun falou, uma cidade onde está muito aguçado o desemprego, por uma série de questões, seja porque o emprego está indo para o exterior, seja porque a indústria está ganhando competitividade com novas máquinas... Tanto o governo estadual quanto o municipal estão criando frentes de trabalho no estilo que tinha nos Estados Unidos na década de 1930. Porque as pessoas não conseguem se colocar, tenham ou não tenham emprego. Porque são pessoas já fora do mercado de trabalho, com baixa escolaridade e assim por diante. A frente de trabalho, bancada pelo governo, para essas camadas já deslocadas, seria uma solução, dentro dessa sua visão da ocupação?

Domenico De Masi: Claro. Eu ia chegar lá. Eu dizia que os empresários, de posse desse dinheiro, falam em investimentos. Mas, conforme os dados e as estatísticas de todos os países da Organização para a Cooperação e Segurança da Europa [organização voltada para a promoção da democracia e do liberalismo econômico da Europa. Criada em 1975 e formada por 56 países], nos últimos 15 anos, o índice de investimento diminui sempre.

Então, o que é feito desse dinheiro? O que acontece com esse dinheiro? Acontecem duas coisas.

A primeira é que o empresário remunera cada vez mais os altos dirigentes, os tops. Os tops mesmo. O presidente da Fiat [uma das maiores fábricas de automóveis da Itália e do mundo], na Itália, ganha doze milhões de dólares por ano. O presidente da Coca-Cola, nos EUA, ganha 220 milhões de dólares por ano. O presidente do Travel Group [grupo que trabalha com serviços de reservas hoteleiras via internet], sempre nos EUA, ganha 480 milhões de dólares por ano.

Mas isso não bastaria para esgotar a enorme massa de dinheiro acumulada pelas empresas, a soma de dinheiro que as empresas acumulam e que é retirada do mercado e jogada na Bolsa [de Valores]. A Bolsa é esse grande ciclone, essa enorme roleta mundial que nunca se fecha. É uma Las Vegas [referindo-se à maior cidade do estado de Nevada, nos Estados Unidos, conhecida pelos cassinos] permanente. Quando fecha Tóquio, abre em Londres. Fecha lá, abre em São Paulo. Fecha aqui, abre em Nova York. E assim por diante. E onde homens sem pátria, apátridas, os grandes financistas... e sem coração, pois não tem nenhuma relação com as pessoas, agem apenas sobre símbolos, sobre dinheiro, ações, deslocam pacotes acionários pelo mundo inteiro em poucos minutos e podem determinar o fim de uma empresa e milhares de desempregados.

O que fazer? Foi sua pergunta. Isto é importante. Mas, se houver outras, eu respondo depois. Não vou esquecer sua pergunta.

Gilberto Dimeinstein: Mas a frente de trabalho é uma boa solução? A frente de trabalho bancada pelo governo é uma boa solução?

Domenico De Masi: Então, vejamos qual é o outro caminho. O outro caminho não consiste em incentivar o investimento desta forma. Consiste em se ter um pacote completo de ações, algumas das quais consistam em incentivar os investimentos, mas pedindo sempre à empresa a garantia do número de vagas a serem criadas. Na Itália, por exemplo, certas empresas tomam benefícios do Estado e investem em outros países.

Em segundo lugar, há que reduzir drasticamente a jornada de trabalho. Não é possível empregar muitas pessoas se algumas trabalham dez ou doze horas ao dia. Os únicos dois países do mundo que realmente têm um baixo índice de desemprego, os únicos dois no mundo cujos dados são confiáveis são Holanda e Inglaterra. A Holanda, porque 36% trabalham em tempo parcial. E a Inglaterra, porque 22% trabalham em tempo parcial. O regime de tempo parcial é uma das soluções que proponho. Ou seja, é uma das formas de reduzir a jornada de trabalho.

E, depois, há também o problema dos auxílios. É claro que podem ser dados sem problemas. Por exemplo, por que um jovem de 20 anos que trabalha num banco recebe um salário e um jovem de 20 anos que estuda na universidade não recebe um salário? Aqui no Brasil é uma loucura. Eu fui informado de que a universidade pública é a melhor e quem estuda lá são os ricos, porque os ricos podem se permitir ir às escolas particulares desde a infância. Lá aprendem muito bem e, assim, conseguem passar no vestibular e entrar na escola pública no lugar dos pobres.

Portanto, é um absurdo que o Estado tome dinheiro dos ricos para devolvê-lo aos ricos. É um Robin Hood [personagem mítico inglês conhecido como o príncipe dos ladrões, que roubava dos ricos para dar aos pobres] maluco. E isto já vem ocorrendo, cada vez mais, em quase todos os países do mundo.

Caco de Paula: Não, isso está errado. Desculpe. O Estado brasileiro tira dinheiro dos pobres para dar aos ricos. É um pouco pior do que a análise que o senhor percebeu.
Domenico De Masi: Pelo jeito, fui mal informado pelos economistas, que são um pouco o meu alvo esta noite.

Paulo Markun: Nós vamos fazer um rápido intervalo. O Roda Viva volta dentro de instantes. A Claudia Costin tem a primeira pergunta e o Washington... [em seguida]. Voltamos já.

[intervalo]

Paulo Markun: Bem, estamos de volta com o Roda Viva, esta noite, um programa especial, que comemora os 30 anos da TV Cultura, entrevistando o professor Domenico de Masi. A secretária Cláudia Costin tem a primeira questão.

Cláudia Costin: Professor, eu queria voltar ao comentário que o Paulo Markun fez no início sobre o fato de que o Brasil ainda não chegou lá. Nós somos um país de grande exclusão social e somos um país que tem um sistema político marcadamente clientelista. E, nesse sentido, quando se pensa nas idéias que o senhor propõe de enfrentar a burocracia, nós temos um risco posto. Esse risco se associa ao fato de que a burocracia, com todos os problemas que ela traz, ela tem uma característica importante que é a idéia da impessoalidade e a idéia da formalização que, em muitos momentos, na história da Europa, inclusive, se mostraram armas importantes no enfrentamento da administração patrimonialista.

Por outro lado, a democracia mata a criatividade, o senhor coloca muito bem isso no seu livro. Aqui, no caso brasileiro, em que, como mostrou o Paulo Markun, nós avançamos em algumas direções, nós temos os malefícios da burocracia junto com os problemas que o sistema político clientelista coloca. Eu gostaria que o senhor se colocasse um pouquinho, como é que o senhor enfrentaria o problema da burocracia, num contexto como o nosso em que o sistema político traz esses problemas?

Domenico De Masi: Um escritor italiano disse que os italianos preferem a inauguração à manutenção. Acho que a manutenção é uma coisa importante. E uma das diferenças entre primeiro e terceiro mundo é justamente a questão da manutenção. Em vez de destruir o setor público, como acontece em todos os países capitalistas que, após a queda do Muro de Berlim, foram tomados por uma euforia fora do comum, sem entender que o comunismo perdera, mas o capitalismo não havia vencido. Em todos eles, há a destruição dos aparatos burocráticos, o desmantelamento do estado de bem-estar social.

Porém, assim que uma organização cresce [abre os braços], começa imediatamente o perigo da burocratização, porque, é claro, uma grande organização precisa de regras. Mas quantas regras? Este é o problema. Quando a empresa começa a se contaminar pela burocracia, cria-se um círculo virtuoso, ou melhor, vicioso, pelo qual a burocracia vai gerar a si própria. A burocracia parte do princípio de que o cidadão deve ser controlado. Se não for controlado, o cidadão consegue lograr o Estado. Mas, quanto maior o controle, maior é a esperteza do cidadão. Quanto maior essa esperteza, maior é o controle. E assim por diante, numa espiral que não tem mais fim.

O problema deve ser resolvido como, de certa forma, faz a França. Com certeza, a França tem a melhor burocracia do mundo. Ela tem a melhor burocracia porque esse problema foi assumido por um grande personagem: Napoleão Bonaparte. Ele criou uma escola de administração ainda melhor que as famosas escolas americanas ou as européias ou as que vocês também possam ter. Enquanto a indústria privada gasta bilhões para preparar seus dirigentes, a indústria pública não gasta quase nada. E, no entanto, a França investe muito nisso. É preciso sempre manter sob controle a qualidade intelectual dos burocratas, de forma a mantê-los sempre em estado de tensão. Se gastarmos dez para um dirigente privado, temos de gastar cem para um dirigente público, mas o Estado não faz nada disso.

Teríamos de comprar os maiores prêmios Nobel, teríamos de comprar os maiores pensadores de administração, mas não aqueles das escolas americanas, talvez até aqueles, mas corrigidos e atualizados, e investir toda essa massa de grandes especialistas em organização na burocracia pública. É preciso criar escolas muito grandes, extraordinárias. Quando digo grande [abre os braços], não falo de tamanho físico, mas de escolas extraordinárias, para manter a administração pública sempre atualizada. Não só quanto à tecnologia, nem só quanto às normas ou à dimensão legal, mas, sobretudo, quanto à dimensão sociológica, psicológica das organizações.

Cláudia Costin: Mas espera só um minutinho, só para complementar. O senhor estava falando do desmantelamento do Estado em vários países capitalistas. Mas a gente não percebe nenhuma redução do gasto público enquanto percentual do PIB [Produto Interno Bruto], em nenhum país, sequer naqueles que empreenderam reforma no Estado. O que parece estar mudando, inclusive na França, é a forma como o Estado passa a ser gerenciado.

E, nesse sentido, eu só queria um comentário finalzinho pequeno sobre as diferenças de gestão dentro da própria Europa, porque o senhor contrapôs, no seu livro, muito o modelo europeu ao modelo americano. Mas, aparentemente, existem diferenças entre o modelo, digamos assim, anglo-saxão [denominação dada à fusão dos povos germânicos anglos e saxões que, juntos, se estabeleceram no norte e centro da Inglaterra no século V] e um modelo latino. O Brasil se inspirou mais num modelo latino do que num modelo anglo-saxão.

Domenico De Masi: Os modelos que se confrontaram neste século foram principalmente dois: o capitalista e o comunista. O modelo comunista mostrou que sabe distribuir bem a riqueza, mas não sabe criá-la. Cuba é o exemplo de uma ótima distribuição da riqueza. Mesmo as crianças do povo estudam, assim como as dos ricos. Não existe uma diferença enorme de base, ou seja, de formação. Não há diferenciações quanto à saúde nos hospitais e estabelecimentos sanitários. O comunismo mostrou que sabe distribuir a riqueza, mas não sabe produzi-la. O capitalismo, no entanto, mostrou que sabe produzir a riqueza, talvez até demais, mas não sabe distribuí-la.

Cláudia Costin: Daí a importância da terceira via?

Domenico De Masi: O problema, então, é uma terceira via. Ela existe, no estágio atual, indicada pela igreja católica. O Papa João Paulo II [Karol Józef Wojtyla (1920-2005), sumo pontífice da igreja católica de 1978 até 2005. É o papa que visitou o maior número de países no mundo e ficou conhecido por seu carisma], talvez até mais que seus predecessores, entendeu bem esse drama.

 Mesmo porque ele conhecia bem tanto o mundo comunista como o capitalista. E ele rejeitou tanto os excessos comunistas como os capitalistas e foi o primeiro a ir à Cuba. A primeira coisa que Fidel Castro [presidente de Cuba desde 1959, governa o país baseado em uma política de partido único. Sua ideologia é de resistência às influências comerciais e sociológicas dos Estados Unidos] lhe disse, ao descer do avião foi: "Santidade, o senhor está no único país do Terceiro Mundo onde não há diferenças de educação entre rico e pobre".

Mas eu sou laico. E, assim mesmo, admiro muito o modelo seguido por João Paulo II, mas gostaria que também houvesse um modelo laico, ou seja, um modelo de quem não tem fé, não crê em outra vida, não crê numa série de aparatos ideológicos que são próprios da igreja. Alguém que quisesse o controle da natalidade, as biotecnologias e assim por diante, mas que fosse insatisfeito com o comunismo e o capitalismo. Temos de achar essa terceira via.

A grande crítica ao modelo americano, neste momento, não vem dos economistas europeus, nem dos economistas do Terceiro Mundo, mas dos economistas americanos. É o livro de Lester Thurow [economista norte-americano, autor do livro O futuro do capitalismo], por exemplo, sobre o futuro do capitalismo. O livro de Reich [Wilhelm Reich, 1897-1957, psiquiatra americano] sobre as multinacionais. E o livro [Turbo capitalismo] de Luttwak [Edward Luttwak, economista norte-americano], publicado há poucas semanas, sobre o que ele chamou de a ditadura do capitalismo.
São os economistas americanos que, por estarem no epicentro daquele sistema, notam a aberração daquilo que chamam de "turbo capitalismo". Um capitalismo perigosíssimo. E nós temos de criar uma terceira via, até para ajudar os americanos.

Washington Olivetto: Professor, no seguimento anterior, o senhor citou alguns salários gigantescos de presidentes de grandes conglomerados norte-americanos. No entanto, curiosamente, possivelmente, o homem que mais se aproximou da idéia do Midas, do que tudo que toca vira ouro, deve ter sido Picasso [Pablo Picasso, 1881- 1973, considerado um dos artistas mais famosos e versáteis do mundo, co-fundador do cubismo, criou, além de pinturas, várias esculturas reconhecidas internacionalmente].

O Picasso pegava um guardanapo de papel, como esse aqui, desenhava alguma coisa, assinava e aquilo começava a valer milhares ou milhões de dólares. Evidentemente, para chegar nesse momento do guardanapo, o Picasso construiu uma obra muito grande e qualquer pessoa que for tendo acesso a essa obra percebe que ele era um grande operário, porque o Picasso fazia pintura, cerâmica, escultura, cenários de teatro, jóias. Pelo tempo de vida dele, pelo que existe de obra de boa qualidade de Picasso, ele trabalhava muito. Ele era um operário.

Por outro lado, o Picasso se casou várias vezes com mulheres lindas, o Picasso adorava tomar bons vinhos, o Picasso dançava, usava camisas de marinheiro com bermudas e jamais abriu mão das suas alpargatas de lona para usar um sapato de couro. O que eu queria perguntar ao senhor é o seguinte: essa possibilidade da combinação do homem que trabalha como formiga e vive como cigarra ela é uma possibilidade real ou ela é um privilégio só do gênio?

Domenico De Masi: Eu estudei a vida de muitos criadores, de muitos grupos criadores, porque minha especialidade, nesta fase, é, de um lado, o mercado de trabalho pós-industrial e, de outro, o estudo da criatividade e de sua organização. No universo dos criadores encontramos de tudo. Não ter características é a característica da criatividade.

No curso da história, encontramos um Beethoven [Ludwig Van Beethoven, 1770-1827, compositor erudito alemão que introduziu o Romantismo na música e é considerado o mais influente músico do século XIX], que viveu em grande pobreza. Há uma descrição muito precisa do quarto onde ele morreu. É uma coisa que causa... que comove, tão grande era a pobreza. Ele teve três ou quatro livros em sua vida.

Schubert [Franz Peter Schubert, 1797-1828, compositor austríaco] nunca pôde comprar um piano. Morreu aos 32 anos sem haver tido a alegria de possuir um piano. Se pensarmos em quantos pianos há na casa dos ricos para crianças brincarem de tocar... Tocam um primeiro acorde e depois se cansam.

Porém, temos também D' Annunzio [Gabrielle D'Annunzzio, 1863-1938, escritor, dramaturgo e poeta italiano, símbolo do decadentismo], que viveu num luxo extraordinário.

Wagner [Richard Wagner, músico autodidata], que tinha mania de luxo e dilapidou o dinheiro do rei Ludwig II [Ludwig II von Bayern, 1845-1886, foi príncipe, depois rei da Baviera. Destacou-se como incentivador das artes e das músicas, pouco se interessava por política. Era admirador do trabalho de Wagner e, sabendo de seus problemas financeiros, ofereceu ajuda] para ter casas suntuosas. Há uma descrição das coisas que Wagner encomendou às lojas para decorar sua casa. O tecido, as cadeiras... É algo fora do comum.

Portanto, há de tudo. Andy Warhol [1928-1987, pintor e cineasta norte-americano, representante da pop art] fez do alto custo de seus quadros uma filosofia. Ele disse: "Existem coisas belíssimas que nós não vemos mais. São tão cotidianas e abundantes, que não as saboreamos mais". Por exemplo, uma garrafa de Coca-Cola, uma lata de Campbell's [famosa sopa enlatada norte-americana], que, a seu modo, é uma obra-prima. Então, é preciso aumentar seu tamanho, pintá-la e fazê-la custar bilhões. Se não for caro, os ricos não tomam conhecimento.

Eu passei a manhã de hoje com Oscar Niemeyer [arquiteto brasileiro considerado um dos  nomes mais influentes na arquitetura moderna internacional]. Há tempo eu sonhava conhecê-lo, porque o considero um dos grandes gênios da arquitetura e, sem dúvida, junto com Le Corbusier [pseudônimo que Charles Edouard Jeanneret-Gris (1887-1965) adotou a partir dos anos 1920. Urbanista e pintor francês de origem suíça, é considerado um dos mais importantes arquitetos do século XX] é o maior arquiteto do século XX. Encontramos nele uma postura totalmente diferente diante da vida. Não se parece em nada com a de Picasso. Picasso foi um gênio...[sendo interrompido]

Washington Olivetto: [interrompendo] Bom, mas se inspirar nos traços da mulher para fazer arquitetura já é uma demonstração de bom senso fabulosa.

Domenico De Masi: [sorri] É claro. É claro, mas — sabe?— Niemeyer me mostrou uma inscrição que fez na parede. Diz mais do que a arquitetura. Palavras de um arquiteto: "Mais do que a arquitetura, o que vale são os amigos, a vida e esse mundo injusto que temos de mudar".

Um arquiteto de tal gabarito escreveu uma coisa desse gênero [junta as mãos]. Então, temos de admitir que existem os Picassos, temos de admitir que existem os Wagner, bem como os Beethoven, mas devemos ser gratos a esses gênios.

Keats [John Keats, 1795-1821, poeta inglês] dizia que a obra de arte é uma alegria criada para sempre. Eles nos deram tantas alegrias, que podemos até perdoar alguma fraqueza de sua parte. Mas não podemos perdoar tantos ricos que têm um enorme cinismo e que nem alegrias nos proporcionam.

Roseli Fichmann: Professor, em primeiro lugar, eu gostaria de agradecer as inúmeras referências que o senhor faz. O senhor trabalha a importância da mulher no ambiente de trabalho, a importância da feminilização de toda a discussão. Eu acho que isso é uma contribuição preciosa numa época em que nós ainda estamos lutando por nosso reconhecimento, pela nossa inserção. E, exatamente nessa direção, retomando um pouco aquela temática da exclusão, a questão das minorias é muito séria, tanto do ponto de vista de se conseguir emprego quanto de se conseguir salários equivalentes. E isso, eu tenho informação, não só no Brasil, mas aqui é particularmente acentuado.

Como é que o senhor vê essa perspectiva que o senhor trabalha de uma forma tão interessante do direito como lazer, do lazer como direito e do lazer como alguma coisa que vem somar à pessoa, vem alimentar, até para que ela trabalhe melhor, portanto a recuperação do trabalho como prazer e criação.

Como o senhor vê estas pessoas que estão incluídas, essas que estão no interior do ambiente de trabalho, se mobilizarem, de alguma maneira, de forma responsável, por aqueles que estão excluídos? Eu vejo, assim, uma perspectiva mesmo de uma educação permanente. O senhor, de alguma maneira, tem uma reflexão específica nessa direção?

Domenico De Masi: Bem, até agora, talvez eu tenha sido muito crítico, talvez até demais, para com os modelos: capitalista e comunista. Se a senhora pensar nisso, são dois modelos que os homens inventaram, criaram, gerenciaram. A mulher nunca foi tão excluída, como neste século, da gestão do trabalho e da vida pública. Digamos, portanto, que este século termina com coisas muito bonitas atribuíveis aos homens, mas também com coisas muito feias, pelas quais os homens devem ser recriminados, os homens dos países dominantes. É óbvio!

Portanto, imagino que, se um novo modelo deve surgir, surgirá dos países que não pertencem ao primeiro mundo. E surgirá de mulheres. São as mulheres dos países do segundo e terceiro mundo. Sobretudo as do segundo, pois o segundo mundo, o dos países emergentes como o Brasil, já tem uma série de fatores culturais muito avançados, mas mantém ainda a ingenuidade de um país subdesenvolvido.

Roseli Fichmann: É interessante esse entrelaçamento também da questão da mulher, por exemplo, com a questão de raça. Dá para pensar a questão das mulheres negras e sua inserção. Quer dizer, se não bastasse ser mulher, ser negra, não bastasse ser uma mulher negra... O que isso significa, por exemplo? Então, o senhor imagina... Porque, veja, sua proposta é extremamente ousada. O senhor imagina um mundo mudando a partir daquilo que ele é hoje. Então, como se pode colocar uma nova intenção naqueles que estão criando o mundo tal qual como ele se encontra?

Domenico De Masi: O que será necessário na sociedade pós-industrial, isto é, no próximo século [referindo-se ao século XXI], é a criatividade. A criatividade é uma síntese de fantasia e concretização. Por sua vez, a fantasia é a síntese do inconsciente e da esfera emotiva. Nós, homens, cultivamos, sobretudo a razão, a dimensão da concretização. E devo dizer que as mulheres também têm culpa nisso, porque o machismo, como dizia uma grande feminista, é como a hemofilia: "acomete os homens, mas é transmitida pelas mulheres [risos]". Foram as mulheres, as mães, que ensinaram os homens a serem machistas. E, naturalmente, isso nos agradou, porque o poder, como diz um provérbio napolitano, "agrada mais que muitas outras coisas".

Washington Olivetto: Professor, o senhor citou que esteve com o Niemeyer hoje de manhã e eu lembrei uma coisa que queria lhe perguntar. Eu tenho certo fascínio por esta relação entre o espaço de trabalho, a arquitetura e a maneira como as pessoas funcionam nestes espaços. Eu mesmo, de uma maneira muito tímida, tive a oportunidade de fazer, na minha agência de publicidade, desde a fundação, uma experiência que foi bem-sucedida.

Eu, desde 1986, eliminei toda e qualquer parede. Nós não temos salas. Eu, particularmente, que presido a empresa, não tenho sala. Eu tenho uma cadeira a mais em cada uma das mesas para poder trabalhar com cada uma das pessoas. Isso, inicialmente, teoricamente, foi um pouco traumático e, depois, na minha área de atividade, isso virou quase que um modelo. Eu tenho acompanhado com bastante curiosidade... Essa é uma experiência que, no fundo, foi tímida.

Um amigo meu, da mesma área de atividade, fez duas agências de publicidade, uma com o Frank Gerry, que fez o Museu de Bilbao, que todo mundo está falando, em Venice, na Califórnia, e a outra em Nova Iorque, feita pelo Gaetano Pecci, um arquiteto que certamente o senhor conhece. Um brilhante arquiteto italiano. Ele fez isso com uma intenção que era muito curiosa... Que a empresa dele teve um auge criativo no início dos anos 1980. Alcançou, através desse auge, um sucesso econômico, financeiro, muito grande. Adquiriu muitos novos clientes e, a partir de um momento, ele sentiu que só poderia revitalizar a empresa a partir de um processo arquitetônico novo. As pessoas eram as mesmas. E, curiosamente, isso deu muito certo.

Por exemplo, esse projeto do Frank Gerry, para o senhor ter uma idéia, também não tem espaços físicos fixos, existem pushing-balls para as pessoas mais nervosas descarregarem suas energias. Aqueles que quiserem trabalhar e ficar no trabalho tem armário, como um armário de clube. E aqueles que quiserem trabalhar a partir de casa podem. Ser interativos, através de computador. O senhor acredita que isso vai ser cada vez mais comum, se misturar qualidade de arquitetura com qualidade de trabalho?

Domenico De Masi: Não há a menor dúvida, pois o que faz a arquitetura? Ela fixa itinerários predispostos. Esses itinerários podem ser rígidos como uma estrada ou flexíveis como uma série de atalhos, como, por exemplo, em Veneza ou Nápoles. E é claro que uma primeira parte das modificações dos locais de trabalho foi o espaço aberto.

O edifício de Niemeyer para a Mondadori [editora italiana fundada em 1907], em Milão, um edifício maravilhoso, é todo em espaço aberto, no qual não há paredes, mas há lugares fixos. Portanto, ainda existiu um elo com a visão de empresa, de linha de montagem. Pois devemos considerar que a linha de montagem acabou influenciando, em nível quase psicanalítico, a organização do trabalho. E, da fábrica, ela passou para os escritórios. Por isso, os escritórios burocráticos são organizados como linhas de montagem.

Para começar, uma primeira etapa é, obviamente, abolir os escritórios fechados e os lugares demarcados. Mas a segunda... o muro que cerca a empresa. Hoje a empresa é a última fortaleza, o último castelo que sobrou. Ao entrarmos numa empresa damos os documentos, recebemos o crachá, como numa grande prisão. Agora, enquanto o visitante tem de entregar o crachá, porque só podem entrar com autorização, milhares de informações entram e saem sem nenhum documento [mexe as mãos de um lado para o outro], por telefone, fax e correio eletrônico.

Uma desestruturação total do trabalho é o próximo passo. Pois o trabalho intelectual, o trabalho já realizado por 60% ou 70% da população ativa, por ser mental, pode ser feito em qualquer lugar, em qualquer lugar onde a informação possa nos alcançar. Em qualquer lugar, onde possamos contatar os outros através de telefone, fax e internet.

Por isso, o local e o tempo do trabalho não têm mais sentido. Toda aquela massa enorme de aparatos burocráticos que as firmas e os ministérios usam para controlar horários de entrada e saída dos trabalhadores é completamente inútil. Eles poderiam ficar em casa, sempre que lá pudessem fazer determinado trabalho. Poderiam ir ao escritório só se necessário para uma reunião ou para lidar com algo que não possa ser deslocado para casa. Isto é necessário.

 Ontem, no Rio [Rio de Janeiro], passei praticamente o dia tendo de me deslocar dentro da cidade, não menos de 4 horas no carro. Imaginemos que isso leve, em média, duas horas. E imaginemos que, no Brasil, 20 milhões de pessoas passem todo dia duas horas no carro. São 40 milhões de horas ao dia praticamente desperdiçadas. E é o sacrifício pago por uma cidade organizada pelo critério de linha de montagem. Como se ainda todo o trabalho fosse feito em um alto-forno e fosse necessário sair de casa e ir ao escritório.

Então, o senhor fez muito bem desestruturando tudo aquilo. Os arquitetos têm de fazer o mesmo, assim como os dirigentes e os chefes de pessoal. Hoje se tem ainda uma visão, eu diria, clintoniana, das relações de trabalho. Ou seja, é preciso ter os dependentes à mão, de forma tangível. Não há nenhuma necessidade disso. Podemos estar juntos quando necessário e dialogar à distância quando necessário.

Eu conheci uma... justamente, aqui em São Paulo, nos dias que passei em uma convenção para a qual fui convidado, conheci uma garota que me foi indicada para intérprete. E essa garota graciosa, bonitinha e muito amável me acompanhou com muita gentileza. Eu perguntei se era noiva ou casada. Como vocês sabem, os italianos perguntam sempre essas coisas [risos].

Ela me disse que era noiva. E perguntei por que o noivo não estava ali com ela. E ela disse que nem sequer o conhecia. Estava noiva havia um ano, mas via internet, de um italiano [risos]. Então, perguntei como faziam amor, quantas vezes ao dia se falavam, enfim, isso tudo. Ela me disse que tudo funcionava bem. Estava tudo bem até alguns dias antes, pois o noivo, que é italiano e, portanto ciumento, teve uma crise de ciúmes. Ele desconfia que ela o esteja traindo com outro, sempre via internet. E ela não tem como provar que não é verdade. E, portanto, ela está sofrendo. Aconselhei que se encontrassem uma vez pessoalmente, podia ser que...[sendo interrompido]

Washington Olivetto: [interrompendo] Ou um italiano ao vivo, pelo menos...[risos]

Domenico de Masi: Agora, isso pode até ser um exagero [mexe as mãos], embora seja algo que vá se multiplicar no futuro. Mas, com certeza, nós já podemos mesclar relações: só virtuais, relações tangíveis, relações de trabalho, relações de estudo e relações de tempo livre. É o lado bonito da sociedade pós-industrial. É esse contínuo fervilhar de atividades em que não sabemos mais o que é trabalho, estudo e tempo livre.

Paulo Markun: Professor De Masi, este programa tem um pouco disso, dessa bagunça, dessa anarquia pós-industrial, na medida em que a gente... Eu nunca consigo administrar quem vai fazer a pergunta, quanto tempo vai demorar a resposta e quanto a gente vai dedicar a um assunto ou outro [risos]. Mas, nessa bagunça, a gente tem uma ordem, que é o intervalo. São dois intervalos. Nós vamos para o segundo agora. Voltamos daqui a instantes.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, desta série especial, que comemora os 30 anos da TV Cultura e hoje entrevistando o sociólogo italiano Domenico de Masi. E o Dante tem uma questão.

Dante Silvestre Neto: Professor De Masi, o senhor tem se notabilizado muito pelos trabalhos e pesquisas feitas no domínio do trabalho e da economia. Mas há outra área que o senhor conhece bastante bem, e é nessa área que eu gostaria de colocar minha pergunta.
Nós temos, no nosso âmbito do trabalho cotidiano, dentro do Sesc [Serviço Social do Comércio] de São Paulo, debatido esse conjunto de questões relativas ao lazer, ao tempo livre, esse novo fenômeno social que está aí. Até porque, dessa reflexão, deriva todo o conjunto de orientações à nossa programação. Uma programação que é feita em 26 centros culturais em São Paulo, pelos quais passam 200 mil pessoas por semana, mais ou menos.

E, recentemente, numa discussão informal a respeito deste assunto, que é permanente no nosso trabalho, alguém fazia a seguinte observação, alguém, aliás, que é um admirador seu, que é o Danilo Santos de Miranda [diretor regional do Sesc-SP], que conhece bem o seu trabalho.

Ele dizia o seguinte: "Sempre que nós falamos da questão do tempo livre, do lazer, isto surge de uma forma muito clara, sempre como uma reivindicação legítima, um direito legítimo de homens e mulheres que trabalham, tem obrigações e precisam de um espaço de descanso, de lazer, de entretenimento, de recreação. Mas essa observação é mais ou menos óbvia. O que é menos óbvio, menos evidente, são as relações existentes entre o lazer e a produção de cultura".

E alguém argumentava:  "É preciso, portanto, conhecer muito bem o pensamento do professor De Masi, porque ele, junto com o [nome incompreensível] leva a fundo essa reflexão, ou seja, há uma relação entre lazer e cultura. O que esse tempo livre, o que o lazer produz em termos de valores de civilização, de criação artística, de pensamento? Qual a grande força educacional e formadora desse novo tempo social?

Domenico De Masi: Aqui, também, acho interessante começar por um dado estatístico. Porque, com freqüência, não refletimos sobre a relação quantitativa entre o tempo de trabalho e o tempo livre.

Imaginemos um jovem de 20 anos. Um jovem de 20 anos, com a média de longevidade atual, poderia viver 60 anos. Normalmente, se morre por volta dos 80 anos. Sessenta anos de vida são 530.000 horas. Esse jovem de 20 anos, se for admitido no trabalho hoje mesmo, e se permitirem que trabalhe até os 60 anos, durante 40 anos seguidos, algo raríssimo, e se esse jovem trabalhar 1700 ou 2000 horas ao ano, que é praticamente o máximo de tempo que trabalham um suíço, um norte-americano ou um japonês, esse jovem acumula 70 ou 80 mil horas. Isto é tudo.

70 ou 80 mil horas, no máximo, esperam esse jovem, enquanto a vida que ele tem pela frente, é de 530 mil horas. Ou seja, 460 mil horas são para outras coisas que não o trabalho. E isto até para o mais laborioso dirigente. Digamos que esse jovem dedique 10 horas ao dia para dormir, lavar-se, o que chamam de cuidar de si [o "cuidado de si" é um conceito desenvolvido pelo intelectual e militante de esquerda francês Michel Foucault no terceiro volume da série sobre história da sexualidade]. São 230 mil horas. Restam ainda, outras 230 mil, completamente vazias, absolutamente vazias.

Claudia Costin: Mas, professor, o senhor fala no seu livro e também em outros trabalhos, que a escola não prepara para este tempo livre.

Domenico De Masi: É certo.

Claudia Costin: E que tipo de mudanças o senhor acredita que poderiam ser feitas no sistema escolar para que a escola não preparasse exclusivamente para o trabalho?

Gilberto Dimenstein: Posso acrescentar? A escola prepara para a criatividade ou ela prepara para alguém que memoriza e que reproduz informações memorizadas?

Domenico De Masi: Este é o problema. Se meus alunos - os que tenho na classe e que têm 20 anos - sei muito bem que terão 70 mil horas de trabalho, mas que, no entanto, terão 530 mil horas de vida, ou seja, sabe-se que o trabalho é um sétimo de suas vidas.

Por que, então, devo dedicar a escola apenas para prepará-los para o trabalho [faz gesto de unitário com as mãos]? O trabalho se tornou uma categoria onívora. Uma categoria que consome tudo: a família, a sociedade, a escola. Só preparam o garoto para o trabalho, só para o trabalho. Mas, o trabalho não é tudo. E, no entanto, há atividades que, mesmo sendo pesadas, são importantes, mas não são consideradas trabalho. O trabalho é uma convenção.

Uma mulher que cuida do filho não trabalha, de acordo com as estatísticas. Se a mesma mulher cuidar do filho de outra é considerada trabalhadora [risos]. E recebe o salário de babá. Se essa mulher cuidar de trinta garotos ao mesmo tempo é considerada professora. E recebe, então, outro tipo de salário. É tudo uma grande convicção teatral. É um grande teatro a questão do trabalho e do tempo livre.

Agora, se o que aguarda o jovem são 1/7 de trabalho e 6/7 de tempo livre, a escola, a sociedade, a família e os meios de comunicação de massa devem ensinar esse jovem como usar esse tempo livre. Porque, no tempo livre, podem nascer idéias, pode haver grandes explosões de criatividade, mas pode haver também droga, violência, dissipação, inutilidade e tédio.

Roseli Fischmann: Professor. Tem um problema aí, que é o seguinte: quer dizer, na verdade, a escola está ensinando o que a sociedade está vivendo. O que volta naquele ponto: então, como é que nós podemos fazer para que esta própria sociedade, nós, adultos, comecemos a viver um pouco diferente isso?

Num dos seus trabalhos, o senhor menciona que... Acho que o senhor cita o caso do Fellini [Federico Fellini, 1920-1933, foi um dos mais importantes cineastas italianos. Fazia críticas à sociedade com inspiração neo-realista. Gostava de improvisar, em seus trabalhos], que continuou sempre andando na rua, falando com as pessoas, procurando o contato...

Que a gente também tem um pouco isso, daquele que é genial como alguém que se afasta das pessoas, vamos dizer assim, comuns. Como é que fica isso, do ponto de vista, por exemplo, dos políticos. Que estão tomando decisões e que, em geral, são afastados do ser humano das ruas. Como é que fica para nós, que estamos pensando e pregando as coisas? O senhor me compreende? Quer dizer, a escola não vai conseguir fazer uma coisa muito diferente do que a sociedade está vivendo.

Domenico De Masi: Este senhor me perguntava precisamente como ensinar o tempo livre. O tempo livre se ensina com o próprio tempo livre. Mas, não se trata mais tanto de tempo livre, pois, quando as atividades são manuais, como as de um mineiro, há uma divisão clara entre as horas de trabalho e as horas fora do trabalho. Mas quando a atividade é intelectual, temos aqui um publicitário, como distinguir o tempo de trabalho do tempo livre? Se ele estiver aflito porque tem de achar um slogan ou a solução de um problema de um cartaz publicitário, essa aflição estará sempre presente, até de noite. Ele até pode achar a solução ao amanhecer, ainda sonolento... [sendo interrompido]

Washington Olivetto: [interrompendo] Você até controla a hora de fazer, mas não controla a hora de não fazer.

Domenico De Masi: Ótimo. É isso mesmo. Hoje, tudo está mesclado. Estudo, trabalho e tempo livre são uma coisa só. Vou dar um exemplo. O que estamos fazendo agora? Estamos estudando? Bem, às vezes, até trocamos idéias. Estamos trabalhando? Em certo sentido, sim. Estamos nos divertindo? Eu estou. [risos]

Washington Olivetto: Você sabe – professor - que acredito às vezes que, de vez em quando, os criativos gostam da presença dos burocratas, porque é uma maneira deles se sentirem diferentes e mais criativos. Ou, pelo menos, não descobrirem que, possivelmente, eles não sejam tão criativos assim.

Claudia Costin: Mas essa questão da ruptura, do tempo livre, do trabalho, remete às sociedades indígenas, por exemplo, que é um exemplo que nós temos no Brasil. Quer dizer, nas sociedades indígenas não há essa ruptura entre tempo livre e trabalho. E, aparentemente, o ser humano, na sociedade industrial, quebrou isso. E eu estou ainda voltando à questão da escola. Como é que a escola recupera esta junção, do prazer do aprendizado... É bom, é gostoso aprender? E como que a gente aprende não só para produzir?

Domenico De Masi: Claro, naquelas sociedades primitivas, estudo, trabalho e tempo livre são uma coisa só. Mas não são produtivas. Devemos achar um modelo que preserve a produtividade e o lazer.

Um dos maiores estudiosos de ciências organizacionais, que iniciou a sociologia do trabalho e organização nos Estados Unidos dos anos 1920 e 1930, era da Austrália. E sua intenção ao chegar aos Estados Unidos, vendo a sociedade americana tão convulsa e atomizada, era de recriar nas empresas o lazer dos aborígines australianos e a produtividade da empresa americana. Em parte, ele contribuiu para que isso tudo acontecesse. As relações humanas, após seus estudos, mudaram para melhor. Devemos dar continuidade, devemos eliminar progressivamente as barreiras arquitetônicas das indústrias, ou seja, a empresa tem de se abrir.

Quando minha mãe pensava num trabalhador, pensava num camponês, pois ela vinha do campo. Quando nós pensamos num trabalhador, pensamos em Charles Chaplin de Tempos Modernos [filme de Chaplin, lançado em 1936 que retrata a vida de um homem que tenta sobreviver aos avanços industriais do mundo moderno]. Aqueles fotogramas são terríveis, porque gravaram em nossa mente que o trabalhador é um metalúrgico mecânico na linha de montagem.

Mas, hoje, em 80% dos casos, o trabalhador é um intelectual. É o funcionário, o dirigente, o profissional. São pessoas que trabalham com a cabeça, não com as mãos. Então, para que ter um aparato arquitetônico, um aparato de controle e disciplina como se fossem metalúrgicos mecânicos analfabetos do começo do século? A empresa não renovou sua organização. Ela apenas renovou seu maquinário e substituiu os operários por funcionários e dirigentes. Só isso.

Caco de Paula: [interrompendo] Professor, desculpe interrompê-lo. É justamente nesse momento em que o senhor identifica que a empresa, pode ser empresa ou Estado, renovou seu maquinário, mas não renovou a sua organização... a gente vendo o que o senhor escreveu, a respeito de todas as sociedades as mais primitivas, a pré-industrial, a industrial, a pós-industrial, a gente vê uma idéia subjacente de evolução na questão tecnológica, que possibilita ter as horas livres.

No entanto, parece que todo curto-circuito que existe em discutir as horas livres com a felicidade do homem, é a gente perceber que há um descompasso muito grande entre a solução tecnológica, como o homem consegue rapidamente a solução tecnológica e uma dificuldade, não sei se uma falta de criatividade, para encontrar a solução de convívio social.

Assim, como o senhor vê uma evolução no que diz respeito à máquina, o senhor acredita que o homem tem... O senhor tem, digamos assim, uma expectativa otimista com relação à evolução de consciência, evolução social do homem? Ou esse curto-circuito ainda vai continuar sendo tão grande?

Domenico De Masi: Eu acho que, quando o ser humano toma consciência de um problema a fundo, costuma achar a solução. O problema é quando não toma consciência ou quando o subestima. Nos últimos dias, conversei com muitos intelectuais aqui no Brasil. São extraordinários, muito ativos, muito inteligentes e criativos. Tomo a liberdade de fazer apenas uma crítica. Parece-me que já se acostumaram a conviver com as diferenças sociais e não as notam mais.

Ao passo que quem vem da Europa não consegue entender como pode haver, a poucos passos de distância, como no Rio de Janeiro, a maior favela da América Latina [favela da Rocinha, com aproximadamente 150 mil habitantes, fica ao lado de bairros como São Conrado e Gávea] e o bairro dos milionários. Mas, parece que, por força da convivência, como por um mecanismo de defesa psicológica, até o intelectual brasileiro se habituou um pouco a tudo isso. Ou julgam-no uma fatalidade que não pode ser eliminada.

Mas eu acho que nós aprenderemos a usar as máquinas, desfrutando-as ao máximo, ou seja, delegando às máquinas todo o trabalho nocivo, perigoso, pesado e nos habituarmos a viver com nosso grande monopólio, que é o trabalho intelectual.

Marcos Antônio de Rezende: Professor, embora os leitores da minha revista, por enquanto, estejam garantindo meu emprego, a questão do desemprego me preocupa. Chateia-me. Eu acho que é uma coisa realmente dramática. O senhor disse, num dos seus escritos, acho que era uma proposta sua... o senhor reflete sobre o fato de que muitos executivos trabalham 10, 14 horas por dia, enquanto colegas ou filhos desses executivos não trabalham nenhuma, porque não têm emprego. E uma das propostas do senhor é, justamente, dividir.

Cada um trabalha menos para mais gente trabalhar. Mas é possível isso em termos concretos? O senhor acha que é possível organizar o mundo de forma que as pessoas trabalhem menos para que mais pessoas trabalhem?

Domenico De Masi: Eu trato disso em meu livro O futuro do trabalho, que vai ser lançado aqui no Brasil.

Marcos Antônio de Rezende: Saiu agora na Itália, não é isso?

Domenico De Masi: Hã?

Marcos Antônio de Rezende: Saiu na Itália agora?

Domenico De Masi: Acaba de sair na Itália. E foi bem recebido. Houve duas edições numa semana. Mas foi muito criticado pelo Jornal da Confederação das Indústrias, que disse: "Quem vai pagar o tempo livre?"

É óbvio: quem paga são as máquinas e a produção social!

Mas, voltando ao assunto, acho que os problemas no mundo são ao menos três. O primeiro, habituar cinco bilhões de pessoas que nunca trabalharam a começar a trabalhar. O que faz o cidadão da favela, ou o cidadão pobre do Cairo, quando acorda de manhã? Ele não vai ao escritório. Ele deve ir à luta até a noite, tentando sobreviver. Então, esses cinco bilhões seriam educados, aos poucos, para um trabalho produtivo. É uma obra colossal, pois começa na escola [junta as mãos].

Mas, simultaneamente, o bilhão de cidadãos do primeiro mundo seriam educados para trabalhar menos. Assim como os primeiros sofrem, é claro, sem culpa alguma, involuntariamente de ócio obrigatório, os segundos sofrem, com culpa, de hiperatividade. O fato de um dirigente ir ao escritório às 8:00 para sair às 20:00, descuidando totalmente da família, descuidando totalmente da vida política e social, descuidando totalmente de si mesmo... Não vai ao cinema, ao teatro, não lê, não pára um instante para apreciar a beleza do universo, das obras de arte, de tudo que nos é dado gratuitamente. Isso significa depauperar a si mesmo e aos outros, sem nenhum motivo. Não existe um motivo para justificar isso.

Quando o operário ficava na linha de montagem, se ficasse lá o dobro do tempo, produzia o dobro de porcas. Se um intelectual fica o dobro do tempo no escritório, ele não produz o dobro, produz a metade. Se o nosso publicitário ficasse 12 horas ao dia sentado no mesmo lugar, falando com as mesmas duas ou três pessoas, fechado no mesmo escritório, falando das mesmas coisas, sempre oprimido por uma burocracia imunda, sempre num contexto esteticamente asséptico como um hospital, ele não poderia criar absolutamente nada.

A criatividade provém da variedade. A criatividade advém da combinação, do jogo, da amizade, do amor, do lazer, da introspecção. E o dirigente não pode fazer nada disso. O dirigente que sai da Business School [escola voltada para a formação de profissionais que seguem carreira de negócios] americana, cujo objetivo é a competitividade, a competitividade destrutiva, em vez de uma emulação solidária, é uma pessoa perigosa para si mesma, perigosa para os outros e para a democracia. De fato, foi daquele mundo, daquele centro social muito perigoso para si próprio e para os outros, que surgiram a globalização selvagem e o turbo capitalismo.

Dante Silvestre Neto: Professor de Masi, agora pouco nós estávamos falando sobre um assunto muito atraente, um assunto magnífico, que é a presença da mulher na sociedade. Muito bem. Na verdade, o domínio do trabalho tem sido, por excelência, um domínio da presença do homem, dos valores masculinos. Ele é dominado por uma espécie de "masqueocracia"  impenitente, que, a todo o momento, afirma que corre atrás de objetivos muito claros, muito delimitados: mais dinheiro, mais poder, mais prestígio, mais contatos prestigiosos e mais mulheres, também.

Parece que mesmo o medo à eterna danação não extinguiu esse vício do homem. Então, a presença desse universo masculino, ele não teria no contraponto do tempo livre, o nascimento de novos valores, ligados à sociabilidade, à conviviabilidade, à afetividade, ao estético, à criação. E, nesse sentido, estaria havendo uma espécie de feminilização do mundo?

Domenico De Masi: Claro, o mundo está se feminilizando, pois, em 200 anos da sociedade industrial, de meados do século XVII a meados do século XIX, os homens se reservaram o mundo da produção. Reservaram às mulheres o mundo da reprodução e fizeram a cisão: a produção na empresa e a reprodução em casa. E descartaram do mundo da produção todos os valores considerados inferiores: a subjetividade, a estética, a ética e a emotividade. Esses valores tornaram-se quase um monopólio da mulher. O homem se envergonha ao se comover, por exemplo.

Mas, esses valores que detestávamos e que, portanto, deixamos para as mulheres estão se tornando dominantes, pois, na sociedade pós-industrial, baseada na criatividade, não há possibilidade de criatividade sem estética, sem ética e sem emotividade. É aí que emerge a mulher, ela que foi escrava desses valores e deles está imbuída, hoje, já liberada, na medida em que se liberta dessa opressão, consegue expressar-se.

Quando cheguei a São Paulo, tive uns momentos de folga enquanto aguardávamos o carro. E andei um pouco pela livraria do aeroporto. É interessante notar que quase metade dos livros é escrita por mulheres. Isso acontece com os filmes. Se assistirmos aos filmes... Quase não percebemos, mas hoje, um número enorme de cineastas é constituído por mulheres. Era um papel que antes cabia à gente.

Minha grande amiga, a cineasta italiana Lina Wertmüller, era a única cineasta do mundo. Tenho absoluta certeza de que desse advento da grande feminização nascerá uma sociedade nova. Naturalmente, as mulheres que estão se masculinizando cometeriam um erro gravíssimo, porque acabariam se masculinizando justamente quando isto não serve mais. É como os italianos que foram colonizar a África quando os outros iam embora.

Paulo Markun: Professor Domenico, o nosso tempo está acabando e eu tenho uma última pergunta. E confesso que pensei um pouco antes de fazer, tinha uma porção delas, como todos aqui, tenho certeza, e é sempre bom quando isso acontece no programa.

A questão é a seguinte: há pouco menos de um ano, eu saí de São Paulo, larguei um trabalho que me fazia trabalhar 12 horas por dia, fui morar fora de São Paulo, fui morar numa cidade em Santa Catarina. E encontrei muita gente que me perguntava apenas uma coisa: "Mas o que você faz em Santa Catarina, onde você trabalha"? Eu dizia: "Eu trabalho em São Paulo, na TV Cultura, toda segunda-feira". "Mas, em Santa Catarina você não faz nada?" "Não, desse ponto de vista eu não faço nada".

E havia uma indignação de muita gente e, de outro lado, gente que dizia: "Poxa, que inveja". Como se não fosse possível para muita gente fazer isso. Eu sei que para a grande massa dos brasileiros não é possível esta opção, mas, nesse mundo que nós estamos discutindo aqui, e que o senhor está abordando, talvez seja possível.

A pergunta que eu faço é a seguinte: parte dos problemas que o senhor abordou e parte das soluções que o senhor propõe dependem, em grandes instâncias, da decisão de grandes empresários, políticos, da mudança das relações dos países, das definições de vocações, de um projeto de país?

Agora, tenho a impressão que existe alguma parte disso que pode depender da vontade de cada uma dessas pessoas. Então, eu perguntaria: que parte é essa e se é possível a cada um, de algum modo, dar a sua pequena contribuição para que essas mudanças, no bom sentido, aconteçam?

Domenico De Masi: Cada um pode dar uma contribuição fundamental. Grande parte das pessoas tidas como civilizadas, isto é, já destituídas, espero não em definitivo, de sensibilidade humana, pensa que tudo que pode agradar custa. E, se não há dinheiro, não há nenhuma possibilidade de usufruir o tempo livre.

Todos deviam começar a pensar sobre o que são os grandes luxos da sociedade contemporânea. O luxo é uma coisa rara. Era um luxo ter uma carruagem quando ninguém a possuía. Hoje, somando tudo, o que é raro?

O tempo é raro. Um número enorme de pessoas, embora a média de vida tenha dobrado em duas gerações e haja instrumentos para economizar o tempo, tem a impressão de nunca ter tempo.

Um segundo luxo é o espaço. Ter espaço. No Brasil, o espaço é infinito. O mundo tem espaço infinito. Porém, há poucos meses, pela primeira vez, a população que vive nas cidades superou os 50% da população mundial.

Portanto, tempo, espaço e, depois, solidão. Nós precisamos também de momentos de solidão. Precisamos também de momentos de introspecção.

E, depois, segurança. Precisamos viver em ambientes onde possamos sair à noite, passear e admirar a lua à noite, como o sol de dia, com toda a segurança de que isso não nos cause problemas.

E, depois, autonomia. Aquela autonomia que nos é tolhida pela cidade, nos é tolhida pela empresa e por toda a burocracia que nos sufoca.

Então, esses luxos, tudo somado, são luxos que podemos ter gratuitamente. É preciso educação. Uma educação - é óbvio - para aquele sétimo de vida que o jovem terá de passar no trabalho e naqueles 6/7[seis sétimos] de vida, importantíssimos, que o jovem passará no chamado tempo livre.

Paulo Markun: Professor Domenico, muito obrigado pela sua entrevista, obrigado aos nossos entrevistadores, a você que está em casa. O Roda Viva volta na próxima segunda-feira, sempre às dez e meia da noite. Uma boa noite, uma boa semana, um bom tempo livre para você e até lá.

Nenhum comentário:

Postar um comentário